Clarice Lispector, jornalista, cronista, entrevistadora, escritora, tradutora, pintora, contista.
Não lhe faltam atribuições e qualidades para apontar o brilhantismo da mulher que dominou o Brasil, na terceira fase do Modernismo, depois de 1945, num cenário literário marcado por estilos indubitáveis, inaugurando uma nova fase do Modernismo, com estilo próprio, intimista envolvendo-se na própria epifania.
Uma escritora nascida na Ucrânia, por volta do ano de 1920, advinda de uma família judia, que emigrou para o Brasil, ainda no ano de seu nascimento, fugindo do massacre em massa produzido pelos soldados russos, durante a guerra civil.
Benjamim Moser, escritor americano, trouxe em sua biografia a descrição marcante do estupro de sua mãe, na I Guerra Mundial, pelos bolcheviques russos, e, como consequência o acometimento da doença sífilis. Clarice chegou a citar num de seus textos que seu nascimento ocorreu por conta da superstição de que a gestação estancaria a doença.
Chegou no Brasil na cidade de Maceió, onde viveu junto aos pais e irmãs, Tânia e Elisa, por um breve período, vindo a se instalar em Recife, onde faleceu sua mãe (1930). Logo depois, seguiu para o Rio de Janeiro.
Iniciou seus estudos na Universidade do Brasil (UFRJ) onde sua vida literária foi desenhada. Inicialmente prestou-se ao serviço de tradução de textos em outras línguas, pois falava ao mínimo 4, depois como jornalista.
Casou-se, nos últimos anos da faculdade, com Verona que veio a se tornar um diplomata, a quem Clarice acompanhou, andando pelo mundo: Estados Unidos, Itália, Inglaterra, Suíça entre outros.
Teve dois filhos, citados em sua crônica "As três experiências", como sendo planejados e desejados. Pedro e Paulo. Aquele foi diagnosticado com esquizofrenia, logo na segunda infância.
Clarice não suportou a vida corrida imposta pela diplomacia de Verona, vindo a se divorciar do marido e se instalar novamente no Brasil.
Recém chegada escreveu sobre a angústia de sobreviver sem a colaboração do marido, mas para ela, isso nunca foi um problema, passou a escrever para jornais usando pseudônimos como Tereza e Helen Palmer, discorrendo sobre etiqueta, beleza, até mesmo o creme Pond's foi parar em suas estórias.
Perto de completar 101 anos de seu nascimento, no dia 10 de dezembro, tive a honra e alegria de participar de um bate papo cultural sobre a escritora na Festa Literária de Congonhas-Minas Gerais.
Uma escritora considerada hermética, um mistério a ser desvendado, foi e continua sendo, lida pelo mundo.
Certa feita, ao receber um professor português com doutorado foi questionada sobre a sua obra A paixão segundo GH, que segundo o doutor, já havia lido 3 vezes e não tinha compreendido nada. Ela respondeu que entendê-la não era uma questão de inteligência, ou toca ou não toca, ilustrou referindo-se à uma adolescente de 13 anos que tinha dito a ela que era seu livro de cabeceira.
Todos os que tiveram oportunidade de conviver com Clarice são unânimes em dizer que era melancólica, tímida, mas era também bem humorada e feliz junto aos seus.
Em única entrevista televisiva cedida para a TV Cultura pouco antes de sua morte, já quando recebeu diagnóstico de câncer no ovário, em estágio avançado e sem tratamento, parecia triste, monossilábica, indiferente.
Apontada pelos críticos entre a loucura e a genialidade, era uma mulher misteriosa, que mantinha o cigarro na mão, tendo sofrido, inclusive, no ano de 66, um grave acidente provocado por ele, ficando com as mãos deformadas e quase perdendo os dedos.
Para manter o contato com os filhos, se punha à sala, junto a eles, com a máquina de datilografia no colo e trabalhava ali, o tempo todo.
Muitas histórias são ditas sobre a escritora, mas três me atraem profundamente:
A primeira foi quando de sua participação numa aula da PUC, a convite de Afonso Romano de Santana, em que Clarice, ao ver os alunos discorrerem sobre ela, sai e não volta mais. Ao ser questionado sobre o motivo, ela afirma que aquilo que diziam dela não era o que a definia e por isso teve fome e foi embora, ou seja, a Clarice era humana!
A segunda, foi ao receber como prêmio uma viagem para Paris, local que já conhecia, levou Olga Borelli, sua amiga e secretária, enquanto Olga desfazia as malas, ela disse que iria dar um passeio pela cidade para perceber como estava o ar, e quando voltou, disse a Olga que o ar estava pesado para ela e, por isso, queria voltar naquela hora, e assim foi feito. A Clarice inquieta.
A terceira, é sobre Vila Seca, seu marceneiro que ao fazer uma estante para seus livros, foi convidado a ir a um lugar, onde estavam Di Cavalcanti e outros e ela o apresentou como moldureiro. Com aulas de história da arte só possíveis por esse encontro, Vila Seca nunca ficou sem ofício sequer um dia. Clarice conselheira, companheira.
Em sua ultima obra, referida como novela, A hora da estrela. "Macabéa, a personagem principal, era tão pobre, mas tão pobre, que só comia cachorro quente". Essa foi a única obra de Clarice que tratou dos problemas sociais, nas anteriores, prendia-se à visão intimista, de cunho filosófico e psicológico nos convidando para apreciar as coisas ( palavra muito usada por ela) que tempos depois foi substitída por não sintetizar, de acordo com ela, o conceito.
Pra fechar com chave de ouro, Tereza em sua última biografia de Clarice afirmou que entre suas pesquisas descobriu que Clarice havia sido fichada pela polícia duas vezes. E que Henfil, a matou num quadrinho simbólico por ficar em cima do muro durante a ditadura, como o fez com Hebe Camargo. Mas tempos depois, Henfil fez mea-culpa. Sobre a publicidade, veiculada em jornal, Clarice apenas disse: Meu nome é com C e não com S.
Clarice Lispector era fora da curva. Um ser humano incrível, uma escritora de identificação e estilos próprios, uma mulher à frente de sua época. E para os desavisados, a mãe escrevia, embora pouco se sabe sobre isso; e as irmãs publicaram livros: Elisa, romances e Tânia livros e artigos técnicos.
Ela era um "porshe sem freio em meio às ruas do Leme! Se não se aventura, sai da frente", porque ninguém além dela, jamais usará adjetivos de forma tão especial. Vai dizer que nunca pensou em felicidade urgente, em fino frio, em saudade capotando?
Pra sempre Clarice Lispector, a missivista com a cara do Brasil. Getúlio Vargas que o diga!