Despudor literário

Que seria das palavras se elas não pudessem trazer por trás de si verdadeiros enigmas? Para a maioria das pessoas palavras são só palavras, nada mais. Por mais bem elaboradas que estejam não passam de palavras, poucos conseguem vê-las despidas e preferem colocá-las para dormir num sono profundo que as impossibilite de se mostrarem. Melhor retificar: muitos preferem dormir a ter que ver as palavras despidas, porque as palavras não dormem, não descansam, não morrem. Mas isso não é algo que chegue a ser condenável, afinal de contas se parece complicado encará-las nuas imagine despi-las!Despi-las é tarefa para poucos. Ainda mais quando depois de deixá-las expostas tem que dar uma nova roupagem, transparente mas que no primeiro olhar de quem vê parece opaca.

Concordo com Nietzsche quando ele diz que “Os poetas não têm pudor em relação às próprias experiências: eles as exploram.”. Penso que é isso mesmo que acontece. Explorando suas experiências de forma elaborada e bela ele consegue despir palavras,manter um caso de amor com elas e torná-las enigmáticas. O poeta é um verdadeiro despudorado.

Que despudor! Arrancar as roupas das palavras depois vesti-las novamente e jogá-las no mundo, fazendo-as ficarem quietinhas num canto até o momento exato de investirem e hipnotizarem qualquer um que se atreva a olhar para elas. Imagino que Nietzsche certamente descobriu isso e, hipnotizado por um poema qualquer, se espantou com o despudor do poeta nas palavras.

Não é pra menos. Os lamentos, as alegrias, as paixões, os desejos do poeta estão presentes nos seus textos, expostos a todos, mas não de qualquer forma. Ele utiliza todos os recursos que a língua lhe dá e ainda vai além, pois as palavras concretizadas no papel acabam dizendo mais do que o que elas são capazes de expressar. Há por trás delas o dizer que só é expresso pelo silêncio a que elas nos conduzem. É no momento do silêncio após a leitura de um texto poético que o compreendemos, sem palavras, sem teorias. Ele é sentindo. Sei que não há maneira mais pura e verdadeira de explorar as próprias experiências que essa. É um despir-se do pudor de forma magnífica, encantadora e misteriosa. É assim que as palavras do poeta não envelhecem e suas experiências exploradas são eternizadas nos escritos.

Não tem quem ao ler poemas pelo menos uma única vez na vida não se interrogou sobre quem o escreveu. “Será que ele está falando de algo que viveu realmente?”; “Será que ele sofreu ou ainda está sofrendo?”. O que muitos leitores não sabem é que pouco importa se aconteceu algo ou não com o poeta, a poesia já tomou um novo rumo com quem leu.

Mário Quintana diz que o que sobra para a poesia é o que transcende os limites pessoais, mergulhados no humano. E ainda diz mais: “O profeta diz a todos: “eu vos trago a verdade”, enquanto que o poeta, mais humildemente, limita-se a dizer a cada um: “eu trago a minha verdade”. É disso que os poemas estão cheios: da verdade do poeta, verdade-fingida, eu acrescentaria. Não esqueçamos que “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Essa verdade-fingida está exposta e mexe com o leitor no ponto em que toca a sua alma como uma flecha que atingiu precisamente o alvo. É como se em um ponto a verdade do poeta se entrelaçasse à do leitor. E aí está não o que o poeta quis dizer mas o que o leitor sentiu do que ele disse. Eis o que torna encantador um poema: há sempre algo oculto por trás dele que não adianta muito querer decifrar, pois não há decifrações, há sensações. Há o além palavras que sem palavras não funcionaria.

Sem despudor creio que nada disso aconteceria. Mexendo ou não com o leitor o despudor das palavras faz o poema autosuficiente. Como nos diz Ferreira Gullar, “O poema quando é feito deve mudar alguma coisa, nem que seja apenas o próprio poeta”.

Tento, modestamente, ser uma aplicada discípula de tais quais,

BiaSil
Enviado por BiaSil em 30/11/2021
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