Badaladas

Apresento-lhes meu companheiro inseparável que reina impiedoso; por vezes, ao meu lado, outras vezes, à minha frente, muito bem apresentável e de inquestionável eficiência. Um sujeito abrupto trazido da antiguidade e, ao mesmo tempo, tão contemporâneo. Por ironia do seu destino, atemporal, provavelmente se perpetuará cada vez mais indispensável.

De sua função, serviu-me e ainda serve. Volta e meia, barulhento e assustador me chama. Faz-me lembrar das atribuições cotidianas da vida moderna, dos compromissos de curto e longo prazo, do meu eudemonismo... E assim, sinto-me impotente, praticamente um eunuco diante da autoridade que exerce a qual eu mesma lhe concedi.

Para mim, uma companhia sombria, mórbida e incômoda, com a qual me relaciono. Sem dirigir-me um único vocábulo, faz-me pensar no que vivi e quanto tempo ainda me resta. Embora nunca mantivéssemos um diálogo informal, não se trata de um relacionamento assimétrico.

Sempre pulsando semelhante ao pulsar do coração, foi testemunha de nascimentos, celebrações, despedidas, rituais... Posso declará-lo como sendo um amigo intruso, por vezes, inconveniente, pois sua marca registrada é badalar em todos os recantos do Planeta Azul. Seja num Rolex da Suíça, no Big Ben ou na parede de um camelódromo brasileiro qualquer, seus ponteiros cumprem com pontualidade o destino.

Ele que tudo marca, traz suas marcas e também marca o princípio e o fim; as saídas e as chegadas; os telefonemas e as mensagens... Ele que é o marcador de tempo, o mensageiro do fim, eis o meu companheiro pontual: “Relógio, o ditador do tempo”.

Os relógios existem desde o século XIV, usados para fins práticos, estéticos ou colecionáveis; mas é somente quando suas engrenagens param que a vida pulsa. É inevitável, a vida tem o seu próprio relógio e eu não me dou conta do quão escrava sou do tempo.

Olho para o relógio e imagino estar num túnel do tempo. Percebo o tempo esvaindo por entre meus dedos, como se tudo o que fiz não tivesse valor algum. E nessa reflexão, sinto uma dor enorme em mim. Uma nostalgia dos nossos corpos com o meu perfume camuflado ao seu. E assim, escorro e morro como numa ampulheta.

Colecionador de memórias, desdenhando os nossos desejos, ditando seu próprio caminho... No sofrimento, o tempo passa desigual e lento, levando a calmaria embora. Mas tudo passa, inclusive, o mau tempo.

A solidão é um velho relógio estragado. É vital ajustar os ponteiros da nossa existência, pois nossos relógios não controlam o tempo de Deus. Não adianta observar o relógio, nem adiantá-lo. Há momentos em que se faz necessário parar de dar corda. É impossível voltar no tempo ou correr contra o tempo. O tempo é presente precioso.

O tempo, uma invenção da morte, desconhece o sentido da vida: o gozo do degustar de uma poesia, a beleza do presente, a sinestesia da vida, o mistério do horizonte, o prazer de abraçar, o brilho no olhar, o sabor e o aroma das estações... e então me pergunto: Adiantá-lo ou atrasá-lo? Detê-lo ou retardá-lo? Considerá-lo ou ignorá-lo? E numa fração de segundo, volto em mim e concluo que é impossível, sob esse ponto de vista.

O tempo não passa objetivamente no tic tac do relógio. É na sincronia dos ponteiros que há um universo de memórias, de encontros e desencontros, de reflexões sobre os abismos que vivemos ou o que a nossa imaginação ilusória cria. Cada um traz dentro de si o seu próprio tempo. Não há segredos e nem receitas para usufruir o tempo. Há de se romper as algemas do tempo e tirar um tempo. Tempo para apreciar o tempo. É preciso também de tempo para a compaixão, para olhar ao redor, olhar para o outro, estender a mão, acolher e amenizar a dor, saciar a sede e a fome dos que sofrem. Não há tempo certo ou tempo errado, sempre há tempo de ajustar os ponteiros e recomeçar. Existe, sim, um relógio perdido no labirinto do interior humano, esperando para ser despertado e viver intensamente as badaladas do coração.

@janaina.belle

Palavras Líquidas
Enviado por Palavras Líquidas em 29/11/2021
Reeditado em 18/02/2023
Código do texto: T7396115
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