A Garça e o Rio
A Garça sobrevoou graciosamente o antigo Rio onde, há pouco mais de dez anos, molhou seus pés nas águas cinza e tomadas pelo lodo como se fora uma praia paradisíaca.
Ao ver sua silhueta sombreando sua superfície, o Rio prontamente agitou-se. Seu plácido curso d’água tornou-se uma corredeira de lembranças e emoções, de saudades e questionamentos, de risos e lágrimas.
Em toda sua existência, outras aves pousaram em suas águas, alimentaram-se de seus peixes e, logo levantaram voo em busca de novos locais onde se alimentar. Mas a Garça fez mais do que se alimentar. Ele deu sentido ao Rio. Ele não mais corria ao encontro do mar, tornou-se da Garça a morada quando devolveu a ela o reflexo de sua imagem e ela viu um animal exuberante, poderoso, imponente, mas, ao mesmo tempo, doce, misterioso, delicado e frágil. Esse paradoxo confundiu o Rio, mas ele sentia que, finalmente, descobrira sua missão de existência: cuidar para que a Garça fosse feliz.
Assim, seguiram-se dias que pareceram anos. O Rio provendo tudo de suas águas para a felicidade de sua amada e a Garça retribuía beijando-o, acariciando o fundo com suas patas longas e delicadas, remexendo o lodo e expondo seu verdadeiro interior.
Não tardou para que o Rio, bem mais experiente que a Garça, percebesse os perigos que suas águas turvas poderiam esconder. Esse sentimento crescia a cada caminhada da Garça, cada segredo escondido em seu gorjear, a cada jura mútua de amor. Outras aves, não entendiam a natureza daquela relação, animais traiçoeiros começaram a rondar querendo desfrutar daquela química. Invejosos, olhavam com desconfiança, tramavam secar o Rio e, assim, deixar a Garça sem seu alimento.
Toda essa sujeira escorria das margens para o fundo de seu curso. Todo esse limo dificultava o caminhar da Garça e o Rio percebeu que, assim, ela ficaria presa a ele e incapacitada de voar. E não existe nada mais triste do que viver preso ao chão quando se é capaz de voar.
O Rio, então, sendo fiel à sua missão, fez com que a Garça alçasse voo em busca da felicidade. Suas águas passaram a já chegar salgadas ao mar. A última imagem que teve foi o corpo elegante de sua amada cortando as nuvens até desaparecer no horizonte. E, desde esse dia, não se passou um sequer sem que se lembrasse do tempo que tiveram juntos.
Por isso suas águas se agitaram ao vê-la novamente. Mas por que agora? Teria mesmo sido um sonho ou um sinal de que ainda havia muito a viver? Mas será que ela o reconheceu lá de cima? Afinal, o Rio passara todos os dez anos que se seguiram limpando seu interior e cultivando flores em suas margens, para afastar os perigos e permitir que a Garça, se acaso retornasse, pudesse molhar seus pés em águas mais limpas e voar quando quisesse.