Tributo roubado
(Caso verídico,
ocorrido em 28.11.2017, Anhangabaú-São Paulo, SP)
Dorme sempre, sob a marquise do prédio onde trabalho, um senhor em situação de rua [houve tempo em que dizer mendigo não era ofensa]. Sempre com o mesmo cobertor surrado. Quase sempre com a cabeça coberta.
Hoje estava lá, mas chamava a atenção que no lugar da coberta havia um pano muito grande, novo, preto. Isso, por si, já chamava a atenção, mas, além disso, o fato de hoje estar com a cabeça descoberta e deitado de costas [um termo mais técnico seria em decúbito dorsal].
Não fosse já a aparência de mortalha e a posição funérea do pobre homem, visão um tanto impactante, algo ainda mais estranho: um ramalhete grande, lindo, de rosas vermelhas, com celofane transparente, todo bem caprichado, com laço também encarnado, intacto!
A ideia de rito fúnebre muito forte era tocante, triste e causadora de emoções desconcertantes.
O pessoal do prédio não conseguia passar e entrar sem uma pausa respeitosa, um olhar pensativo e questionador ao mesmo tempo... será?...
Eu parado, esperando terminar o cigarro para entrar, não sabia bem o que pensar ou fazer, quando ouço atrás de mim alguém dizendo:
"... a gente pega e sai fora!" e outro que responde: "não! é do rapaz..."
Me volto e vejo uma jovem figura feminina de parco pano escuro como vestido, curto mesmo, cabelos a custo penteados, mas ainda eriçados. Aparentava a desqualificação contida na voz. Impossível não notar era o olhar ávido de cobiça, acompanhado de sorriso concupiscente de quem está prestes a tomar doce de boca de criança.
Sem tempo para ninguém pensar, a criatura corre sôfrega, toma buquê do outro e correndo mais, some dentro de uma repartição pública ao lado.
Ato contínuo, vejo tremer todo o corpo do indigente que dormia, vivente afinal, respirar fundo, mudar a posição do sono e seguir dormente.
Pensei que a ladra é quem precisava das flores, estaria mais morta afinal.