Acordei animada, apesar da noite mal dormida provocada pela invasão dos pernilongos.

Cá entre nós: "seresdesumaninhos" intransigentes estes, não? Chegam imponentes com um som estridente como aviso de que vão: sugar o seu sangue, deixar-lhe marcas e, sem chance, nem adianta oferecer resistência. Fez-me lembrar de Mirtes, delegada de polícia federal, de quem tive o prazer de ser aluna, no segundo ano da Faculdade de Direito: "Se o estupro é inevitável, relaxe e goze." Demorei alguns anos, para interpretar a polêmica frase da professora que carregava na cintura um revólver para ir, inclusive, até a cafeteria. Via sempre um exagero em suas análises, parecia que o mundo dela era diferente do meu (e no fundo era), quando falava de bandido era taxativa: "bandido bom é bandido morto ou aleijado." No fundo, quis ser Mirtes em vários aspectos de minha vida. Quando disse a ela que queria ser delegada da PRF foi bastante sincera (mentiras sinceras me interessam): Donzelas morrem cedo! Coragem pra sustentar quem era nunca lhe faltou. Não casou. Não teve filhos. Não tinha tempo. Mas curou-se de tudo atolando a cabeça e o corpo no trabalho. Por isso sua patente ascendeu rápido.

Mas, enfim, o assunto era o mosquito, e quem resiste a um zumbido tão marcante quanto o promovido pela espécie? Tão calmo feito um vulcão... A ciência explica que a fêmea é a responsável pela orquestra cujo instrumento é a asa no seu movimento de vai e vem. Pensei que se não tivesse asas, o ataque seria menos ofensivo. Mas sem asas, não voaria. Tudo é relativo.

E por que a praga adora ficar perto da face? O gás carbônico que exalamos do nariz! Simples assim! Sem nenhuma cerimônia, avisa que chegou, mostra sua supremacia pouco diplomática, arrasta raízes mapeadas em tom anil e deixa marcas, só violadas pelo tempo. Ou com ajuda de um antialérgico tópico.

Encontrá-lo foi tarefa inconclusiva na noite derradeira. Nem mesmo a última tecnologia adquiruda no Shopping da Saúde (amo farmácias e faço passeios frequentes nessas que hoje se tornaram uma loja de conveniência), uma raquete branca, com sensores de presença em linhas azuis e com som "imático" foi capaz de tamanha façanha. Ventiladores ligados, passos rastreados pelo vizinho debaixo... (Se fosse sua paciente, sei que aproveitaria o barulho das sandálias para aumentar as prescrições medicamentosas, pois, como psiquiatra, trabalha com um tratamento multidisciplinar e veria o quão infeliz é a vida do portador de insônia crônica).

Mas para honra e glória do Senhor Jesus, sem nenhuma pretensão espiritual religiosa, encontrei o obeso mosquito pousado sobre o espelho, bem na minha frente. Olhei pra ele com aqueles quilos mortais e com um sorriso sarcástico, dei-lhe uma bofetada, sentindo  com prazer, espumar o canto da boca. Em minha mão o corpo e no espelho, a marca sangrenta de quem nasceu para se empanturrar e morrer. No fundo somos isso: nascemos e morremos, e no intervalo, comemos e dormimos. E vez ou outra, nos divertimos. Certo é comer e dormir.

Peguei o papel higiênico, enrolei aquele corpo prensado, mais a sujeira do espelho e fiz um enterro digno para aquele parasita que não mais me apavorará.

E se não fosse a voz acelerada da Nice, dando-me más notícias, certamente o dia começaria bem:

- Tem uns seis desses em cima do guarda-roupas. Vai tentar matar agora ou esperar que elas saiam à caça de noite? Quem te come não dorme!

Nem respondi Nice. Morri!

 

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 26/11/2021
Reeditado em 27/11/2021
Código do texto: T7394625
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