Retorno ao trem
De volta ao trem!
Depois do isolamento social da pandemia.
Achei que não fosse conseguir nunca mais embarcar em um trem.
Terça feira, engarrafamento monstruoso e com muita gripe ( assolando a cidade do Rio). Não tive outra opção a não ser estacionar o carro na metade do percurso e ir de trem...
Frio na barriga. Quase dois anos sem embarcar!
Eu reluto a princípio mas caminho até a estação.
Logo na entrada vejo Danilo, meu velho conhecido. Agora já era um homem mas nas mesmas condições de antes. Notei mais amargura em sua expressão .Perdeu a aparência inocente... Tambem percebo que nada mudou em sua vida, no mesmo lugar, na mesma estação. Ele me reconheceu: " Oi tia...Tá sumida!"
Eu respondi e perguntei se ele estava bem. Ele balançou o ombro, olhou o infinito resignado: " Vou indo".
Embarco pensando em Danilo que era menino das ruas e hoje homem das ruas. Seu problema estava em outro patamar mas com a mesma raiz , abandono, falta de estrutura familiar e desesperança.
Fecho os olhos e relembro aquela carinha de anjo que tanto me encantou em minhas viagens, relembro a tentativa do CAPES de minha cidade de o reintegrar...Mas pelo jeito a batalha ainda não tinha sido ganha ...Vida que prossegue...Mais triste, mais segue...
Em pé no trem pra variar (rsrs). Não está cheio. Está Suportável. As pessoas ao redor com máscaras, umas e outra com nariz de fora.....
A viagem prosseguiu tranquila... O medo se dissipando...Com toda precaução e prevenção como banho de álcool e duas máscara (rsrs).
Olho ao meu redor, começo a reconhecer o burburinho que tanto me encanta.
" Tudo como dantes no Reino de Abrantes."
Vendedores ambulantes anunciando seus produtos, senhoras em pé e jovens sentados...
No meu lado esquerdo percebo um grupo de trabalhadores retornando. Uma alegria barulhenta de fim de jornada. Brincadeiras e comentários engraçados. Disputa entre eles por um saco de salgadinho Tira teima. Um deles é criticado porque está gordo. Ele alisa o ventre e diz:" o homem que não tem barriga, não tem história."
Todos riram.Acabei rindo também.
Em outra estação entrou uma mulher aparentando 30 a 40 anos, morena, bonita e bem vestida. Segurava uma bolsa de um lado e com a outra mão um exame médico. Aquela típica bolsa plástica que carregamos quando saímos do laboratorio/clínica com resultado.
Ela encostou na porta e com um olhar perdido e distante virou de lado. Várias lágrimas, em questão de segundos, começaram a rolar pela sua máscara preta...A feição não mudou.Sua face não endureceu ou relaxou...Ela só deixou as lágrimas rolarem daqueles olhos grandes de jabuticabas...
Observei...Era uma tristeza resignada, contida...Com parte do rosto coberto, chorava ...Mas não se desesperou...Apenas chorou elegantemente...As lágrimas rolando por aquela face bonita...
Eu olhando. Deu vontade de abraçar ou tocar em seu braço ...Mas estava relativamente distante e a jovem senhora evitou qualquer contato visual.
Era como se ela não estivesse ali...
Na terceira ou quarta estação depois ela desceu...
Fiquei pensativa... O que significava aquele choro? Seria o resultado daquele exame em suas mãos, seria a morte de alguém, a perda de um grande amor ou a perda de um emprego? Jamais saberei...Ela passou pelo meu caminho, deixou-me pensativa, mas nada levou de mim, nem meu sorriso...Não deu tempo.
Mas fotografei sua face com a lente do meu coração. A única coisa que pude fazer foi elevar meus olhos para o alto e pedir que recaisse sobre ela a proteção divina e, que qualquer que fosse o motivo do choro que ela tivesse a paz e a força necessária...
E assim prossegui a viagem...
O meu retorno, no meio da massa...Turbilhão de sentimentos, vivências ...Emaranhados de almas...
Quantas vivências unitizadas em uma mesma caixa de aço ! Sendo transportadas pelos caminhos, desembarcando em suas estações destinos...
Olho para fora e vejo o movimento da paisagem, o vai e vem do trem...Tempos difíceis... Tempos de grandes mudanças...
Tempos de sermos teimosos e contrariarmos as estatísticas, as previsões, os prognósticos e acreditar que a saída está no humano.No resgate da simplicidade, no afago, no abraço e na solidariedade.
Sei lá...Tantas coisas nos assolando, nos mostrando o quanto somos frágeis.
A tão almejada imortalidade é apenas uma utopia...O que temos? O prazo de validade da vida... A morte nos tacando na cara todo dia o quanto a vida é transitória. Não temos marcado na pele o prazo de vencimento, igual ao das mercadorias.
No entanto a morte é real e é uma das únicas certezas da vida.
Na minha opinião, não sabermos nosso prazo de validade é uma dádiva! Nos permite sonhar, fazer planos, casar, ter filhos, trabalhar e acreditar no futuro.Mesmo correndo o risco que ele não chegue. Mas tentando fazer valer a caminhada.
Desejo imensamente que possamos nos encontrar e encontrar com o outro nesta caminhada e, se possível, tocarmos no coração um dos outros...
Até uma outra aventura...
Beijo no coração!
"A vida não passa de uma oportunidade de encontro; só depois da morte se dá a junção; os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace."
Victor Hugo