O Resgate de Dora, a Aventureira
Saí com minha netinha, Cecilia, para ir a um brechó (Goodwill)
em Edmonton. Era um lugar bem interessante, onde se achava
quase tudo a um preço modesto. O objetivo era comprar para
mim um conjunto de roupas para eu ficar bem aquecido nas
caminhadas e passeios de bike com a netinha durante o rigoroso
inverno do Canadá. Sem muita perda de tempo encontramos
calça, blusa e meias. Também encontramos um dinossauro para
o irmãozinho dela, o Arthur, que ficara em casa com o pai. Como
toda criança, Cecilia estava encantada com todos os brinquedos
que via. Continuamos perambulando por um mar de surpresas
quando Cecilia avistou algo que atraiu seus faiscantes olhinhos:
— Vovô, é a Dola (Dora)! — Olhei para os lados para ver se
tinha alguém conhecido dela, mas não vi ninguém. Segui andando
para onde Cecilia estava apontando e me deparei com uma
boneca. Mais que depressa Cecilia disse:
— Dá pra mim, vovô! É minha Dola!
Minha filha Poliana, mãe de Cecilia, me explicou que se tratava da
boneca Dora, a Aventureira, de um desenho animado que Cecilia
assistia na televisão. Os brinquedos anteriores eu ia devolvendo à
medida que ela perdia o interesse, mas a Dora logo percebi que
não sairia das mãos de minha netinha! Examinei a boneca e percebi
que não funcionava. Disse para a Cecilia que a Dora estava
estragada, ao que, mais que depressa, ela respondeu:
— Vovô, você arruma ela pra mim?
Eu mal comecei a dizer que não tinha jeito quando Cecilia
me interrompeu:
— Tenta, vovô!
Como a boneca era muito barata, resolvemos levar a Aventureira
para casa, mesmo não funcionando. “Mais vale um gosto
do que um carro de abóboras.”
No retorno para casa, Cecilia e Dora vieram batendo o maior
papo. Dora foi apresentada para o papai e o irmãozinho. Troquei
a pilha da boneca e ela deu sinal de vida, mas de repente parou
de funcionar de novo. O recurso era tentar uma cirurgia na parte
eletrônica. Foi um conserto a quatro mãos: eu tentando arrumar a
boneca e Cecilia sentada em meu “cocolo” mexendo em tudo e
esparramando as peças. Para não ver os olhos de Cecilia verterem mais
água do que um chafariz, fui contornando a situação e tirando de
seu alcance as menores peças que poderiam sumir e impedir-me de
arrumar a boneca. No final deu tudo certo, colocamos pilhas novas
e, para minha surpresa, Dora disparou a falar frases em espanhol.
No dia seguinte saí com Cecilia de bike para estrear minhas
roupas. Adivinha quem ela quis levar no pedal?
— Vovô, vovô, vovô eu preciso levar a Dola!
Com muito custo consegui convencer Cecilia a me deixar colocar
a boneca no meu bolso. Mas na primeira coisa interessante que
avistamos no caminho eu tive que retirá-la e entregar para Cecilia:
— Vovô, a Dola precisa ver aquela coisa! Ola (olha), Dola!
Várias vezes avisei Cecilia para segurar firme a boneca.
— Vovô, eu vou tomar cuidado, tá bom?
Durante todo o trajeto, Cecilia foi narrando para Dora as
coisas que víamos e mostrando os lugares por onde passávamos.
Cecilia apresentava todos os personagens fictícios de sua astuta
imaginação para a boneca.
— Vovô, a Dola quer conhecer os patinhos que moram no rio!
E lá fomos nós rio abaixo procurando pela família de patos…
Encontramos várias gaivotas, cães e esquilos, mas nenhum desses
animaizinhos servia para a danada da Dora. Passamos por várias
pontes: azul, branca, de madeira, cinza e enferrujada e nada dos
bichinhos emplumados.
Quando chegamos ao fim do caminho de ida e só nos restava
voltar, Cecilia pediu cheia de esperanças:
— Vovô, você acha os patinhos, por favor? A Dola só quer
ver os patinhos! Você tenta, vovô?
O rio já estava com algumas placas de gelo nas margens e eu
achava quase impossível encontrar patos por ali. Tentei fazê-la
esquecer dos patinhos jogando pedras, folhas e galhos no rio de
cima das pontes. Para minha sorte e felicidade geral de minhas
passageiras, na penúltima ponte encontramos a família tão almejada
nadando e mergulhando à procura de alimentos. Cecilia
gritou, com seus olhinhos brilhando de felicidade:
— Dola, ola os patinhos! O papai pato, a mamãe pato, a
Cecilia pato e o Arthur pato!
Quase que a boneca caiu de cima da ponte para ver os
bichinhos mais de perto!
Com um pouco de argumentos, coloquei a boneca presa no
cinto da cadeirinha da bike e partimos de volta para casa. Daí a
pouco a boneca já estava nas mãos de Cecilia de novo. Cada vez
que Cecilia apertava a barriguinha da boneca eu escutava Dora
falando em espanhol. Uma falava, depois a outra, e várias vezes
as duas ao mesmo tempo; afinal, nem sempre minha querida
netinha tinha paciência de esperar a amiguinha acabar de falar
para chegar a vez dela.
— Vovô, agora você canta Mininique (Dominique)?
E lá ia eu repetindo incontáveis vezes o único pedaço da
música que eu sabia.
— Chega, vovô, chega, vovô! Agora canta a Camela (Camélia)
que caiu.
Eu logo mudava o disco e seguíamos felizes pedalando ao som
de nossa própria trilha sonora: Dora hablando espanhol, Cecilia
entoando o final das frases, e eu derrapando na afinação. Jeanine
Deckers e Orlando Silva que nos perdoem! De repente perdemos
a voz da artista coadjuvante; as pilhas de Dora acabaram e meus
ouvidos passaram a ouvir uma só voz…
— A dona (aranha) subiu pela parede, veio a chuva forte e a
derrubou…
A noite caiu rápido e me concentrei em retornar para casa o
mais rápido possível.
— Para, vovô! Para, vovô! O sinal tá vevelho! Eu aperto o
botão do poste!
Frases repetidas quando tínhamos que atravessar alguma rua
movimentada. Minha netinha apertava o botão do sinaleiro,
esperávamos os carros pararem, e ela ficava no comando:
— Vovô, já pode ir, agola o sinal não está vevelho.
Chegamos em casa com um pouco de frio, as luzes dos postes todas acesas.
Mas quando descíamos da bike, Cecilia disse no maior desalento.
— Vovô, cadê a minha Dola?
Infelizmente, no afã de chegar em casa, Dora havia caído no
caminho e nenhum de nós dois percebemos. O que fazer agora?
Deixei Cecilia com os pais e disse que iria refazer o caminho para
ver se encontrava a Aventureira. Antes, é claro, soltei um:
— O vovô te avisou várias vezes que ela ia cair e você
continuou teimando e tirando ela do cinto.
— Vovô, vovô, eu não vou teimar mais não. Diculpa, diculpa
(desculpa)!
Voltei pelo caminho olhando para todo lado, até que cheguei
às margens do rio novamente. Naquele instante me lembrei de que
a boneca ainda estava com Cecilia quando saímos da trilha do rio.
Estávamos atravessando a rua quando Dora “deu dois suspiros e
depois morreu”, ou melhor, emudeceu quando as pilhas acabaram!
Perdi a esperança de encontrar a boneca, porém voltei procurando
assim mesmo. Ia pedalando enquanto pensava no que dizer quando
chegasse de mãos vazias em casa. A melhor desculpa que consegui
inventar era que a Dora tinha ido morar com os patinhos.
Vim rezando e fazendo promessas pelo caminho… até que
São Longuinho me ouviu! Num canto escuro da sarjeta estava o
objeto tão almejado de minha procura. Foi a Dora que caiu do
galho, ou melhor, da bicicleta e depois sumiu. Coloquei a boneca
no bolso, fechei bem o zíper e voltei para casa o mais rápido que
pude antes de virar picolé ou me perder na escuridão.
Com uma carinha bem triste eu disse para Cecilia:
— Meu amor, sua bonequinha foi morar com os patinhos.
Pegue seu telefoninho e ligue pedindo para o Don Paton cuidar
dela direitinho.
— Não, vovô, você achou a Dola. Cadê minha boneca?
Num passe de mágica (e antes de um choro à moda chafariz!),
eu fiz a boneca aparecer no meu bolso e recebi como recompensa
o melhor dos sorrisos. Troquei a pilha de Dora e estou até hoje
escutando suas repetidas frases em espanhol. Imaginem o que teria
acontecido com aquele sorriso se a teimosa Dora não houvesse
retornado de sua “aventura”? Conselho de vovô: mantenham os
brinquedos de seus netos em segurança!
Pensando bem, na verdade, acho que a culpa é do vovô que
não deu conta de cuidar de duas bonequinhas ao mesmo tempo!
Kennedy Pimenta 🌶