Crônicas de Pai para Filho - Os Precursores
Muitas pessoas na história da humanidade foram precursoras de movimentos de todas as vertentes. Sempre apareceu no mundo alguém que foi o pioneiro em algo, o primogênito de alguma criação, seja ela boa ou não.
Pois bem, no caso de minha família, creio que meu irmão e eu, fomos os precursores do bullying. Não porque praticássemos tal maldade, mas porque fomos às primeiras vítimas de tal abuso psicológico e moral. Talvez não do mundo, mas com toda certeza, da nossa cidade.
Os anos em que se iniciaram essas provações pelas quais meu irmão e eu tivemos de passar foram causados pela estranha mania de meu pai em considerar toda e qualquer atitude tomada por uma criança ou jovem como “coisa de maloqueiro”.
Na escola, éramos tidos como abastados pelo simples fato de sermos filhos de militar ( o que criava na época a ideia de que éramos filhos de milionários ).
Mas nossa derrocada teve início quando da chegada da moda dos bonés ( que meu pai alcunhava estranhamente de bibicos ).
Como todos na escola exibiam os mais variados bonés de times da NBA, ou clubes de futebol de todos os países do mundo, tivemos a péssima ideia de pedir a meu pai que nos presenteasse com um “boné de marca”. Malogro nosso, ele sentenciou que boné era uma coisa usada por maloqueiros.
Porém, nós insistimos e pedimos seguidamente que ele mudasse de ideia. Citamos nomes de colegas que ele considerava “bons meninos”, que exibiam em suas cabeças bonés de couro, com estampas de causar inveja a qualquer cristão. Após muito custo, ele acabou cedendo e nos prometeu que no dia seguinte ao chegar do trabalho, teria nas mãos um bibico para cada um.
Na hora, nem sequer nos passou pela cabeça, o risco de pedir um boné para uma pessoa que os chamava de bibico. Mas criança não atina esses detalhes.
Quando da sua chegada à tarde do dia seguinte, fomos surpreendidos com um par de bonés ( se é que podiam ser chamados assim ), confeccionados de um tecido que não conseguimos identificar, numa cor azul horripilante, e com uma escrita mal alinhada em tinta branca que, aliás, já apresentava lugares descascados ( o que depois descobrimos ser um tipo de adesivo que se soltava com o tempo ).
Meu irmão me olhou de olhos arregalados, como se pedisse uma explicação de seu irmão mais velho, porém, também eu, estava estupefato.
- Mas o que é Loja Alles?
- Vocês não queriam um bibico? Eu ganhei esses dois de um amigo.
Aqui, devo ressaltar que esse nome Alles, nos assombraria por anos e anos seguidos, sendo apenas superado quando da compra de roupas de defuntos em uma loja de roupas no piso superior de uma loja de pneus e alinhamento ( parece absurdo, e realmente é, mas havia mesmo uma loja de roupas doadas por parentes de falecidos instalada no andar superior de uma “oficina/borracharia” ).
Mas mesmo a aparência sinistra dos bonés, não nos impediu de ir até a escola com eles enfeitando ( ou enfeiando ) nossas cabeças.
Bastaram dois minutos dentro dos muros da escola para sermos cercados por uma multidão de amigos, colegas, conhecidos, desafetos e até inimigos. Todos assombrados com o que tínhamos na cabeça. Não vou lembrar de tudo que nos foi dito ali, naquela manhã, mas foi o suficiente para que eu e meu irmão nunca mais usássemos bonés na vida.
E também foi o suficiente para nos convencer que deveríamos pensar duas ou mais vezes antes de pedirmos algo ao meu pai.
Porém, bastou a chegada de uma nova moda, para que deslembrássemos a lição duramente aprendida. Marcas de tênis passaram a disputar não só os pés mas também os corações das crianças da época: o Le Cheval, o Regazzoni, o New Balance (pronunciado niubalas).
Claro, nós usávamos botinas Zebu ( mais tarde descobrimos que não eram realmente Zebus, mas falsificações trazidas do Paraguai por esse tal Alles ) e passamos a ser motivo de chacotas em toda a escola.
Meu irmão me disse que deveríamos pedir a nosso pai, que nos comprasse tênis, ao invés daquelas botinas. Algo dentro de mim, alertava que algo ruim aconteceria, mas já desde aquela época tinha dores nas costas que creditava ao uso das botinas, então resolvemos tentar.
Meu pai ficou dias aborrecido com nosso pedido. Por algum motivo que só ele conhecia, era como se o pedido de usar tênis no lugar das botinas fosse uma afronta contra algum código moral ou preceito religioso. Após dias de silêncio, foi convencido por nossa mãe a comprar um par de tênis para cada um. Tenho que ressaltar ao leitor aqui, que minha mãe não era dada a gestos de bondade. Ao menos comigo. E o fato de ela pedir isso pelos dois filhos ao invés de só pelo meu irmão, pareceu suficiente para convencer meu pai.
- Pois bem, sábado os levarei a comprar tênis. - disse afinal.
No dia esperado, acordamos as cinco da manhã, tomamos banho e tivemos de esperar meu pai tomar o seu chimarrão, o que fez até as sete. Realmente não entendi porque não passou pela cabeça dele acordar os filhos as seis, já que não sairia antes das sete horas, mas preferi não perguntar sob o risco de aborrecê-lo. Queria demais aqueles tênis.
Chegando até a famigerada Loja Alles, percebi o tamanho do erro que havíamos cometido. A loja era um local sinistro. Localizada em uma esquina, próxima aos antigos trilhos de uma linha de trem há muito extinta, ela se resumia a um salão quadrado abarrotado de caixas de tênis até o teto. Nos fundos havia mesas onde camisetas, camisas, calças, saias, meias, etc, estavam todas amontoadas de forma relaxada.
Alles, um árabe (ou paraguaio) cumprimentou meu pai. Que lhe respondeu prontamente:
- Viemos ver aqueles tênis que você me falou. Para os dois meninos.
A expressão de desolação no rosto de meu irmão era tão grande, que me fez pensar em me jogar nos trilhos, mas o fato de não haver mais trens, me fez desistir.
Alles, sem piedade por duas crianças indefesas, sumiu entre as pilhas de caixas e depois voltou carregando algumas. Depositou a nossa frente. E quando abriu, nos deparamos com a coisa mais absurda que havíamos visto em nossa pouca idade.
Quem viveu nesta época sabe que havia outro tênis chamado "chinesinho". Pois este poderia ganhar facilmente o nome de "paraguainho". Era uma falsificação tão mal feita que até as estrelas bordadas tinham pontas a menos.
Saímos de lá de cabeça baixa, calçados com um tênis que nos levaria a ruína.
Ao entrar no portão da escola na segunda feira seguinte, fui recebido por um desconhecido que disse as gargalhadas:
- O que é isso no seu pé?
A quantidade de desaforos foram tantos que a partir daquele dia passei a usar chinelas. Que aliás uso até hoje.
Poderia até escrever mais, como o episódio das calças "semi" baggys. Mas os traumas me impedem.
É isto, com toda certeza, meu irmão e eu fomos os precursores do bullying na minha cidade.
Talvez por isso até hoje eu evite andar na moda.