Manezão
Sempre que vejo essa aí passar, mais me convenço que ainda não é hora de tirar minha camiseta preta. Ela é um símbolo pra eu não me esquecer do meu amor próprio. Maldita! Joguei fora todas as camisetas pretas que eu gostava, porque ela dizia que roupa preta dava azar, mas aturei a saia de cinquenta e duas cores que ela dizia estar na moda. Fui tudo o que não sou pra ela gostar de mim e mesmo assim ela me deixou, essa mal agradecida. Tenho até raiva de me lembrar do dia em que escondi a conta de luz atrasada, só pra comprar a p* da sandália que ela queria. Ficou toda faceira, a perua. Pedi pro Osmar segurar a minha conta do bar e levei a ingrata pra passear, comprei pizza, sorvete, cachorro quente, tudo o que ela quis. Nem cerveja eu tomei, só guaraná, pra ela não reclamar do meu bafo. Comprei a capa do sofá na estampa que ela quis e nem sei por qual milagre ela não me fez comprar sofá novo. Tudo isso aturei porque eu gostava dela.
É que ela sabia, ela sabia o que fazer pra me deixar maluco e me fazia de Deus, de menino, de otário... Tudo o que ela queria eu fazia, mesmo sem gostar de algumas maluquices que ela inventava. Eu fazia porque eu gostava, eu gostava dessa v*!
Aí, de repente, ela vai embora! Disse que estava se sentindo presa! Pediu um tempo! Pediu um tempo, cara! O que é essa p* de "pedir um tempo"? Chorou, fez manha, disse que a culpa era minha. Que ia pra casa da mãe passar uns dias. E ainda me pediu pra cuidar direito da casa. - Não deixa juntar sujeira"! - E eu, imbecil, fiquei limpando casa! Todo dia eu varria aquela bosta de chão, tirava pozinho dos móveis do jeitinho que ela queria, arrumava os bibelôs que ela colecionava. Com o meu dinheiro! Ela comprava e eu não falava nada... e dormia toda noite cedo, pra não correr o risco dela voltar e não me encontrar em casa. Deus me livre se lá, depois do "tempo" dela, voltasse e não me encontrasse. Certeza que me esculachava...
Até aquele dia, que o Vicente me chamou, insistiu, disse que pagava, que era só uma gelada e uns trocinhos no boteco do Zé Pescoço. Não deu pra segurar e eu fui - Se é só isso eu vou, mas tenho que voltar cedo - ainda falei pra ele! Chegando lá, dou de cara com ela, a maldita! Se agarrando, se esfregando com um sujeito mal cheiroso e fumando cigarro mais fedido que os meus. E o idiota aqui, três dias sem fumar, por ela, que dizia não gostar do meu bafo, que enjoava. E ela, ali, cheirando o bafo daquele merdinha e fazendo cara de quem estava gostando...
Nessas horas, um homem tem que se segurar muito pra não fazer besteira! A minha sorte é que sempre fui otário mesmo, uma a mais, uma a menos, não ia fazer diferença. Só que essa doeu. Dessa malandra eu gostava pra cacete.
Eu olhava pra ela com vontade de quebrar todos os dentes daquela boca azarenta, que partiu meu coração em dez pedaços. Falei pro Vicente - me segura, me tira daqui que eu não sou assassino! -
Aí, nós, sem dinheiro, despencamos lá pro bar do Osmar. Ainda bem que ele foi parceiro, me deixou pendurar quantas eu aguentasse. Não fossem os amigos da gente, em certas horas, a gente morria de desgosto. Parceiraço, também, o Vicente, que não largou a minha mão e dormiu na calçada comigo naquela noite. No dia seguinte eu tava um caco, com uma ressaca da p* e sozinho, como nunca me senti na vida. Nem fui trabalhar, entrei no barraco e fui jogando uma por uma daquelas tralhas dela, bem no meio da rua, pra toda vizinhança saber o que essa baranga aí fez comigo. Depois tomei um banho e dormi umas dez horas. Levantei, fui no bar do Osmar me desculpar com ele e filar mais um café com sanduba, passei no bazar da Jurema e pedi pra pendurar três camisetas pretas. Só não comprei mais porque não tinha. Pra me lembrar que daquele dia em diante, só trabalhar, pagar as contas, tomar quantas brejas eu quisesse, fazer o que me desse na telha, pegar quantas baranga desse mole, mas nunca mais chorar por rabo de saia...
Ainda bem que tudo isso é passado. Pra mim morreu essa vampira. Agora é só felicidade com a Rutinha. Essa, sim, tá valendo a pena ter lá em casa...
Menina tranquila, comportada, não fica se regateando pra tudo quanto é homem na rua. Não tem luxo, o dinheirinho que ela ganha é só pra ajudar em casa. É econômica, nem gasta com condução, pega carona com o patrão pra não gastar à toa. E tem mais uma coisa: se eu digo que é não, é não. Ela nem teima, obedece na hora. Nunca entendi por que mulher tem que tagarelar o tempo todo, igual "aquela outra". - ai, você tem que fazer isso, fazer aquilo - Rutinha, não, vive no mundinho dela, de casa pro trabalho, do trabalho pra casa. E é trabalheira, viu? Trabalha em casa de familia e à noite ainda tem disposição pra limpar tudo, fazer minha comida, lavar e passar minha roupa. Não implica com os meus amigos, eu chego em casa na hora que eu quiser. Saio do armazém e passo no Osmar tomar minhas biritas, sossegado, sei que ela tá lá em casa, dormindo e não se fresqueando por aí. Na cama também não tem frescura. Não é igual "aquela" - ai, faz assim, faz assado! - Não tem mais disso na minha vida. É uma rapidinha e pronto. Já deixo a coitada dormir, que trabalhou o dia inteiro.
Final de semana, enquanto eu bato bola com os amigos no campinho, ela sai pra vender bijuterias, um bico que o patrão arrumou pra ela. Ele vem buscar ela depois do almoço e traz à noitinha. - opa, Manezão, e aí, beleza? - me cumprimenta lá do carro. (Meu nome é José Manoel, mas todo mundo me chama de Manezão. Porte físico avantajado, sabe como é, pessoal respeita). Ele também é de poucas palavras, igual a ela. Muito gente boa. Solteirão, aposentado, sossegadão. Mora num casão, só ele e três cachorros. Semana passada ele propôs pra Rutinha ir morar lá, tem quarto sobrando. Assim, ela não precisa ficar indo e vindo todo dia. Só nos fins de semana. Ele se importa com ela. Eu disse - tudo bem, Rutinha, aqui em casa eu me viro, como de marmita e eu tenho jeito pra cuidar de casa, varro, tiro pozinho dos móveis e essas coisas. Já facilita pra você, né? - Ficou de pensar. É que, se ela for, disse que tem que levar umas coisinhas aqui de casa. Pra não se sentir muito sozinha lá. - Sentir o meu cheirinho - ela falou. Aí eu me derreto. Nada como ter a mulher certa pra gente!
Agora, depois que eu acabar essa entrega, dou uma passada lá em casa e, se ela decidiu ir, eu ajudo a transportar as caixas com as coisas dela lá pra casa do patrão. Depois, passo lá no Vicente pra gente tomar umas...
-Alice Gomes-