Perdidos no deserto civil
“Quantos desertos a gente tem que atravessar pra entender que tudo, no final das contas, é deserto?” Li este aforismo no Twitter. Um internauta deve ter achado a frase por acaso na net. Apanhei a sentença anônima, botei na cesta eletrônica onde guardo esses achados para refletir e repercutir depois. Lembrei-me do homem que atravessou aborrecidos desertos a caminho do Oriente Médio, onde vistoriou o Catar, Bahrein e Emirados Árabes Unidos. Nesses países ainda se caminha timidamente para monarquias constitucionais.
O homem que cruzou os desertos árabes com sua comitiva deve ter orado em direção a Meca, dentro de sua configuração religiosa altamente ecumênica. No enorme deserto ideológico do viajante, em calor de quase 50 graus, ele vendia no mercado persa as maravilhas do seu país e de sua feitoria. Diante de regimes autocráticos e repressivos, o homem pregou sua ideia do mundo. Inebriado com a inexistência de liberdade de expressão, dirigismo econômico e ausência de direitos civis, o caminhante sonhou até em se tornar um soberano poderoso e déspota na região Norte de sua pátria. Depois de inviabilizar a indústria petrolífera do seu território tropical, o excursionista idealizou vender petróleo aos países com maiores reservas do mundo, pagar em dólar e gastar em real, a moeda de sua terra. Diante da maluquice do plano, restou ao andarilho oferecer os times de futebol mais populares da nação verde e amarela para os bilionários árabes. “Venda a Pátria, mas não venda o Flamengo”, teria aconselhado um dos membros do seu eclético préstito, composto de militares de pijama, papagaios de pirata, pastores de igrejas “pegue pague” e familiares em geral. “O governo é um deserto de ideias”, anunciou um antigo pajé da civilização Maia, conhecido por Rodrigo Maia. Para ele, o ministro da Economia se perdeu completamente na pandemia, continua perdido e precisa ser encontrado rapidamente, antes que pereça no deserto do horizonte estreito.
“Quantos desertos a gente tem que atravessar pra entender que tudo, no final das contas, é deserto?” Quero que essa frase me conduza. Não consigo pensar em alta filosofia, tipo “o que é a vida?” Imaginei o bêbado extraviado em uma noite suja de um deserto encardido, cantando o hino nacional dos frouxos: “Ouviram do Ipiranga às margens flácidas...” Por mais elevada que seja a intenção, eu acabo ruminando ideias decadentes e ridículas. Extravagante associação de ideias me assalta. O estrambótico chefe de estado entrou rosnando na sala do Exame Nacional de Ensino Médio para fazer um rapa nos conteúdos das provas, na tentativa de deter a “esquerdização” do país. Na pressa, esqueceu o “Admirável gado novo”, do “paraíba” Zé Ramalho, ou talvez tenha confundido com sua tropa de choque.
Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa dos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer
Êh, oô, vida de gado
Povo marcado eh
Povo feliz
Zé Ramalho lançou essa música durante o regime militar, em 1973. A pergunta do Enem: “o que significa a letra da canção?” Trata-se de uma crítica à sociedade brasileira e sua postura de eterna passividade. O povo vivia no deserto democrático, passou por alguns oásis, foi levado de volta a inclementes tempos e continua seguindo firme em busca de novos desertos. No final das contas, nesses tristes trópicos, tudo é deserto civil.