Deixe-me ir, preciso andar
Há seis dias, no dia doze de novembro, o sol completou sua vigésima segunda volta desde que nasci. Sim, uma forma bonita de dizer que na última sexta completei 22 anos de idade. Em anos normais, eu pouco me importaria, mas estando em um ano pandêmico e trágico, que me coloca na posição de sobrevivente vacinado, tudo que eu mais quis foi festejar e celebrar. Levei à risca o saber de Gonzaguinha - sei que a vida devia ser bem melhor, e será. mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita!
Dentro dos protocolos que cabem a um jovem duplamente vacinado no Rio de Janeiro, me permiti viver três dias de encontros com amigos. Na virada de ciclos, tenho a necessidade de encontrar os meus, e depois de tanto tempo, não vivi somente encontros, vivi reencontros. Reencontros de afetos, de abraços, de gargalhadas, de beijos, de amores e de esperanças urgentes para um futuro que tem o dever moral, ético e espiritual de ser melhor que o presente vindo diretamente da Caixa de Pandora.
Reencontrar os meus foi parte essencial dessa virada, mas faltava algo, sempre falta algo. Não muito tempo antes, eu já exclamava nas sessões de análise: “Falta algo!”. A pergunta do analista pode ser a mesma que a sua: “Falta o quê?”. E direi o mesmo que cansei de dizer nessas sessões: “Não sei, queria que você me dissesse…”
O que falta também é presença, assim como vazio também é espaço. A falta assim não é explicável, somente é possível dizer que está ali, e se você me disser que reclamo de uma falta sendo rodeado de privilégios, te digo que sou humano o suficiente pra ser grato a tudo que a vida me deu, mas no momento em que aceitar que estou preenchido, é um claro sinal que estou pronto para desencarnar e ir parar em instâncias superiores. Se a mudança é a única constância do universo, então me defino como um mutante inveterado.
O sentimento crescia e junto com ele Cartola não saia dos meus ouvidos. Ouvi mais de uma vez “Preciso me encontrar” e por algum motivo, durante os dias anteriores ao meu aniversário, absolutamente qualquer música aleatória que escutava no spotify era seguida dos acordes iniciais daquela música. Não importava o gênero, a faixa seguinte seria Cartola. Não acho que fosse um sinal divino, acho que era somente o algoritmo agindo, mas tudo é um sinal para quem procura algo.
Cartola veio e ficou, plantando em mim a certeza que o vazio vinha de uma falta de reencontro, que era preciso andar para procurar. E assim foi, na véspera do meu aniversário tive minha última sessão de terapia com 21 anos. Fiz ela andando, literalmente. Andando pelas ruas do meu bairro, às 20h da noite, conversava ao telefone com meu analista. Era o que Cartola queria, que eu andasse e falasse.
Enquanto eu atingia o topo de uma ladeira, meu analista me perguntou qual era a pergunta que me fazia correr atrás dessa resposta, que me fazia correr atrás do que faltava. Ali, olhando para um céu nublado, meio lilás, meio roxo de nuvens carregadas, sem qualquer visibilidade da lua, mas tão belo, dei a última resposta que me lembro: “Não sei… mas quando eu achar a resposta, descubro qual era a pergunta”.
No dia seguinte tive um encontro, no seguinte também, e no seguinte do seguinte, idem. Encontrei tantos amados, mas faltava. Ainda faltava. Na segunda, feriado da Proclamação da República, eu acordei e vi um céu lindo. Azul, sol amarelo brilhante, nenhuma nuvem baixa, nenhuma previsão de chuva, estava quente depois de um início de novembro chuvoso. Foi no impulso, pulei da cama e decidi ir para o Centro andar de bicicleta. Eu poderia ir no fim de semana seguinte, mas tinha de ser naquele dia, tinha de ser naquela hora. Me arrumei rapidamente e fui, dei um beijo na minha mãe e avisei: “Vou sozinho!”.
E fui. No trajeto, Cartola não cantou. Cheguei ao Centro e desci na Carioca, sai pelas ruas um pouco perdido, deveria ter descido na Cinelândia, onde conheço mais. Eu estava no coração do Rio de Janeiro, um coração que naquele momento estava vazio. Procurei pelas estações de bicicleta e todas ao meu entorno estavam vazias. Decidi andar. Ali, em silêncio, quase sozinho, vi o Rio de Janeiro novamente. Estava lindo, quase intocável como o Éden. Fiz uma foto, mas acho que apaguei. Nada era capaz de retratar aquela beleza de maneira fidedigna.
De pouco em pouco fui me localizando, à medida que me perdia naquelas ruas, mais me encontrava numa saudade espacial que nem eu sabia que sentia com tanta força.
Decidi ir até a Infante Dom Henrique, lá consegui fazer a retirada de uma bicicleta. A sensação foi ótima, mas a bicicleta não estava tão boa, era preciso trocar, decidi ir atrás de outras estações, já que aquela no Aterro estava vazia. A busca por outra bicicleta coincidiu com a busca pelo carioca. O centro estava vazio, deserto, quase um cenário de filme apocalíptico, não era normal para mim, que quase dois anos atrás atravessei aquela região em blocos de carnavais.
Foi exatamente entrando na rua do EMERJ, passando atrás daquelas ruelas e avançando pela direita que, depois de 1 ano, 11 meses, 30 dias, 22 horas e 20 minutos depois, que eu cheguei à Praça XV e quase esbarrei num skatista. Ali havia um grupo de jovens andando de skate, havia crianças correndo, havia pessoas brincando, comendo, se divertindo, rindo e sendo felizes. Ali eu achei o carioca, ali estava o coração do centro, foi ali que também encontrei uma estação recheada de bicicletas, onde pude fazer a troca.
E foi exatamente naquela estação da Praça XV, enquanto eu fazia a troca de equipamentos, que no fone de ouvido eu ouvi aquela introdução de violão. Cartola queria falar. Subi na nova bicicleta e me voltei à praça, enquanto o sol amarelo se convergia em laranja, anunciando o pôr do sol, ouvi os primeiros versos: “
Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar
Não chorei naquele momento, choro agora, enquanto escrevo. Ali, parado, contemplando a vida em seu estado mais puro e gentil, descobri a resposta para a pergunta que tanto me moveu nos últimos tempos na necessidade de preencher a falta de um reencontro.
- Falta o quê?
- Falta me reencontrar.
Faltava acima de tudo me reencontrar. Faltava andar atrás de mim, faltava me reconectar com um presente que fosse bom, me me trouxesse esperança e me lembrasse como é bom viver, e que apesar da vida em certos momentos se mostrar injusta, ainda é possível afirmar categoricamente o quão bom é viver. Ali, entre crianças, risos, namorados e felicidade, posicionei meus pés nos pedais e fui; segui rumo a um reencontro com a vida; segui rumo a um reencontro comigo.
O pôr do sol ficou pra trás enquanto Cartola anunciava:
Se alguém por mim perguntar
Diga que se eu só vou voltar
Depois de me encontrar
Quero assistir ao Sol nascer
Ver as águas dos rios correr
Ouvir os pássaros cantar
Eu quero nascer
Quero viver