Outro dia, passando pela pracinha do meu condomínio, vi alguns meninos reunidos em volta de uma mesa com tampo ornado com tabuleiro de xadrez. Crianças bem nutridas, rostos redondos, algumas até flertando com a obesidade. Tez branquinha branquinha… Nem parecia que moravam à beira-mar; todos moradores do residencial. Estavam combinando uma competição de videogame. Um deles, talvez o escolhido para ser o anfitrião do grupo, informou que a mãe iria pedir, pelo “delivery”, pizzas, sanduíches e coca-cola para todos. Muito śerio, alertou que era obrigatório o uso de máscaras!

 

Não consegui saber que tipo de jogo era… Se era de futebol, corrida de carros, batalhas ou quaisquer outros tipos de jogos eletrônicos. Só entendi que eles iriam se reunir em um dos apartamentos para competir com outro grupo de crianças do condomínio da frente do nosso prédio. Tudo via internet ou “on line”. Pois é! Tempos modernos, novas formas de diversão da garotada.

 

Dei um sorriso, e segui em direção à entrada do bloco do meu apartamento. No caminho, lembrei do meu tempo de criança em Porto Velho, capital do antigo Território Federal de Rondônia, em plena Amazônia.

 

Naquele tempo não existia televisão. As notícias chegavam pelo rádio de ondas médias e curtas. Quem podia, tinha rádio amador ou telefone. Com um detalhe! Uma linha telefônica tinha o valor de um carro popular zero quilômetro. Só os “bacanas” possuíam o aparelho, o que obviamente não era o caso das famílias dos bairros periféricos e pobres.

 

Os curumins, ou melhor, os garotos daquela época se divertiam jogando bola no campinho do bairro. Não importava se estava chovendo ou não. Na chuva era melhor… A diversão aumentava. Na bola divida, entrava-se de “carrinho”... Era legal! Escorregava-se quase dois metros antes de atingir o adversário.

 

No bando de curumins, uma regra de ouro vigorava entre os garotos do Bairro. Em brincadeira de menino, as meninas não entravam e vice-versa.

 

Meninas eram criaturas esquisitas. Viviam de “ti ti ti” e risinhos abafados entre elas. Sempre agarradas às suas bonecas, casinhas e panelinhas. Vestiam uns vestidinhos de chita com laços enormes; tinham as perninhas finas que nem cambitos, e bolachas no lugar dos joelhos. Por qualquer "dá cá, aquela palha”, desandavam no choro. Meninas, definitivamente, eram insuportáveis!

 

Para os meninos, tinha tempo para tudo.

 

Tinha tempo de pião... Tempo de peteca ou bolinha de gude... Tempo de papagaio ou pipa... Tempo de rolemã e tempo de baladeira ou estilingue.

 

Tinha tempo até para as enfermidades.

 

Tinha o tempo da catapora… Tempo do sarampo… Tempo de coqueluche… Tempo de papeira ou caxumba. Bastava um moleque contrair determinada doença contagiosa, e todas as crianças do bairro acompanhavam. Solidárias, talvez? Os que não embarcavam na comitiva de anjinhos rumo ao Campo Santo, ficavam imunes para o resto da vida. Era a tal imunidade natural. E funcionava! Quem pegava catapora, sarampo ou coqueluche uma vez, nunca mais contraia a doença. Estava safo!

 

E tinha também o tempo dos médicos. Sempre no início do Verão.

 

Era quando chegavam os estudantes de medicina do Projeto Rondon(1). Eles arrancavam dentes cariados, curavam perebas, matavam piolhos, davam uma pílulas grandes e amarelas para tirar lombrigas e viviam escarafunchando o ouvido, a boca, o nariz e escutando o peito de todo mundo. Apertavam a barriga dos curumins com força, e perguntavam: “Tá doendo?”- É claro que doía! - O desgraçado apertava tanto, que o couro da barriga, mas parecia que ele ia encostar no couro da costa.

 

Quem não passava no exame daqueles moços e moças branquelos que nem o padre gringo, tinha que abrir a boca para o alicate entrar ou dar o braço para a picada de injeção… das grandes!

 

Menino que tinha dente com buraco, ouvido entupido de cera, nariz escorrendo, frieira e impingem, fugia dos jovens vestidos de branco como o diabo foge da cruz!

 

Nessas ocasiões, o argumento do galho de goiabeira desfolhado funcionava que era uma beleza. Invariavelmente, o moleque, recalcitrante e fujão, era convencido pela mãe zelosa a comparecer à Tenda de Atendimento, carinhosamente conduzido pela orelha. O curumim chegava fazendo careta e andando na pontinha dos pés. Mansinho mansinho!

 

Naqueles tempos, o “tempo" dava para tudo. Mesmo porque, o verão amazônico tem o tempo de seis meses. Era o tempo das secas! O mesmo acontecia com o inverno. Era o  tempo das chuvas, tempo das cheias! Nesse período, era o tempo de construir balsas com troncos de bananeiras para navegar nos riachos, lagoas e charcos que transbordavam; brincava-se com barcos de papel que a molecada soltava nas enxurradas que inundavam as ruas e desciam de roldão as ladeiras de barro escorregadios.

 

Não tinha “tempo” ruim para os meninos daquele tempo e lugar. Se o menino chegava em casa com os joelhos ralados. Não tinha problemas! Uma mãe zelosa lavava o ferimento com água e sabão, depois colocava iodo em cima. Se não tivesse iodo, cinza de carvão resolvia!

 

O berro do moleque lesionado era aterrorizante, medonho! Mas cicatrizava logo, não tinha infecção nenhuma e o curumim estava pronto para outra!

 

Mas o tempo bom… Bom mesmo! Era o tempo da seca, o tempo do Verão. Tempo das competições entre a garotada de uma rua com os garotos das outras ruas.

 

Tinha competição para tudo. Competição de peteca, pião, papagaio, rolemã, baladeiras e cangapé(2). E as competições eram acirradas, renhidas! Tão renhidas que em algumas vezes, os ânimos tinham que ser contidos com a intervenção dos adultos.

 

As disputas aconteciam quase que por acaso.

 

Às vezes, os curumins estavam no campinho batendo uma bola no final da tarde, e alguém que estava chegando da escola trazia a novidade.

 

“Ói, turma! Aquele garoto da orêia de abano da outra rua, na do recreio, dixe qui nossa turma num sabe jogá pião. Qui sému tudo banana!”

 

Era a mesma coisa que jogar gasolina na fogueira.

 

Em questão de segundos, o jogo de futebol acabava e o líder da molecada mandava fazer uma rodinha. Todos sentados, tomavam conhecimento da afronta e se preparavam para lavar a honra da rua.

 

“Apôis na hora do teu recreio, Zé Piaba, tu diz pru oreiúdo ajuntar a turma dele e marcá hora e lugá. Que nóis vai mostrá praqueles bananudos acuma é qui se joga pião, num sabe?”

 

O jogo de pião consistia no seguinte: Um menino jogava o pião; enquanto o brinquedo estava girando, o adversário jogava o seu pião tentando acertar o do outro; se acertasse, era o vencedor; se não, alternativamente, todos jogavam o seu na tentativa de acertar o do adversário. O vencedor era o grupo que conseguia manter mais piões girando no meio da roda de meninos. A gritaria, xingamentos, vaias e aplausos, era ensurdecedora!

 

A disputa era acirrada e com vários brinquedos partidos ou retirados a lasca. De vez em quando tinha uma rusga entre um competidor e outro, logo apaziguada por um adulto.

 

No futebol, não tinha juiz. Só era falta quando o adversário não conseguia se levantar... E a bola só saía do campo, quando ficava no meio do mato ou do charco que circundava o campinho, sem dar possibilidade de jogo. Enquanto dava para chutar a bola, o jogo estava valendo. Vencia quem primeiro fizesse a quantidade de gols combinados. Se acontecesse de anoitecer durante o jogo, a partida só terminava quando os pais depois de ficarem roucos de chamar os competidores, resolviam convencer os “atletas” que já estava na hora de ir para casa. E aí, as mães usavam o que estava mais à mão como argumento. Galhos de goiabeira, sandálias ou puxões de orelha, claro!

 

No jogo de peteca, ou bolinha de gude, quem conseguisse fazer “torite(3)” nas bolinhas do adversário ganhava o jogo.

 

No jogo de empinar papagaio ou pipa, não tinha regras definidas. Vencia a turma que conseguia derrubar as pipas do grupo adversário. Valia qualquer artimanha. Usava-se de "cerol(4)" aos pedaços de gilete amarrados ao longo da cauda da pipa.

 

Tempo da baladeira ou estilingue, era quando as tensões entre as turmas chegavam ao limite. Então, marcava-se uma hora para a guerra de mamonas no campinho do bairro, sempre ao entardecer. Os meninos enchiam os bolsos de sementes de mamona, e usando o estilingue ou baladeira, atiravam petardos de sementes uns nos outros. Vencia quem botava  a outra turma para correr. Nesse caso, a humilhação era extrema. A turma virava motivos de chacota de todo o bairro. Só recuperava o prestígio, depois que conseguia colocar alguma outra turma para correr.

 

Tempo de rolemã era quando o Verão estava terminando. Lá pelos idos de outubro, início de novembro. Era quando começava o Tempo das Chuvas, que durava até o final de Abril e início de Maio.

 

Escolhia-se a ladeira mais íngreme e comprida do bairro. Postava-se um menino no topo da ladeira e outro no final. Esses garotos, com a camisa na mão, eram encarregados de avisar a existência de carros trafegando em direção à ladeira. Tomado esse cuidado, um “suicida” descia a ladeira com rolemã, levando na carona, vários colegas da turma. Vencia quem conseguia completar o percurso com o maior número de meninos em cima do carrinho.

 

Ao final da competição, tinha garoto com arranhões que iam da testa até o dedão do pé. E era então que, nas casas do bairro, depois do banho na bica, o que se ouvia nos lares dos competidores, era uma sinfonia infernal de gritos que mais pareciam com os dos porcos quando estavam sendo capados. Era a mãe aflita de cada “valente”, passando iodo ou cinza de carvão nos arranhões. Claro! Depois das devidas sovas, puxões de orelhas e recomendações de: “Num faça mais isso, curumim(5) sem juízo!

 

No auge do verão, entre Agosto e Setembro com calor entre 41 e 42 graus; aos finais de semana, os meninos se regalavam. Era o tempo de pescaria e cangapés nos  rios, lagos e igarapés. As águas baixavam ao máximo, e praias de areias branquíssimas surgiam nas margens, às vezes no meio dos rios; os peixes ficavam represados nos lagos e igarapés. Disputavam-se, inclusive, quem conseguia pescar o maior piau, o maior pacu ou a maior traíra. Se alguém conseguisse pescar um tucunaré ou um tambaqui - peixes brigadores e valentes, difícil de fisgar -, era o “fanchão”, o campeão! A competição acabava, e aí, não tinha prá mais ninguém. Era chegada a hora do banho e do cangapé. Ganhava quem conseguisse dar mais cangapés sem  parar para respirar. Os mais afoitos e sem juízo, tentavam acertar uns aos outros.

 

Mas as brincadeiras e disputas não aconteciam somente durante o dia. À noite, quando tinha Lua Cheia, os terreiros e o campinho ficavam iluminados ao luar. Nessas noites, brincavam de “Trinta e um. Alerta!(6)” e “Rouba Bandeira(7)”. Nesse caso, quando acontecia da brincadeira ser rouba bandeira, às vezes, a disputa era com a turma da outra rua. Mas era difícil… Sair à noite dependia da autorização dos pais. E brincava-se também de “Contação de Histórias”. De preferência, histórias de terror ou de lendas dos encantados da mata amazônica.

 

Nas noites sem Lua. Escuras que nem breu e com ameaça de chuva, não tinha curumins nas ruas. Eram noites de assombração… Vai que aparece um Lobisomem, uma Mula Sem Cabeça ou um Papa Figo?(8) - Nessas noites, quando não chovia, o jeito era se reunir no terreiro da casa ou de algum vizinho, e brincar de Adivinhação, Jogo da Velha, Ioiô ou Bilboquê.

 

Tinha vezes em que a vida dos curumins não se resumiam apenas em arranhões, dedos torcidos, puxões de orelhas e lambadas de galhos de goiabeira.

 

Em algumas ocasiões especiais, tinha o momento de prestígio máximo. De quase reverência. Era quando, aos domingos, depois das aulas de catecismo que sempre aconteciam depois da missa das sete e acabavam quase sempre às nove horas da manhã, os curumins tiravam a roupa de ver Deus, pegavam uma bola de capotão e se preparavam para mais uma pelada no campinho, até a hora do almoço. O rotineiro peixe frito ou cozido. No entanto, não raro, o grito de uma dona de casa ecoava pelo bairro:

 

“Acode, Tunico! As galinha do armoço fugíru e corrêro pru lado do campim!”

 

Uma corrente elétrica deixava os curumins em frenesi. Um olhava para outro. O outro olhava para o um. E todos viravam adversários de todos. Que pegasse uma das galinhas fujonas e a devolvesse para a dona. Estava automaticamente convidado para o almoço dominical da família. Tinha a honra de sentar na cabeceira da mesa, de frente para o Chefe da casa. E suprema distinção. Tinha direito de comer a coxa da penosa fugidia e servir-se da jarra de kisuco o tanto que aguentasse.

 

A satisfação maior... O supra sumo da soberba e empáfia, era quanto a galinha fujona pertencia à mãe de um curumim de outra rua.

 

A correria, gritos dos curumins e cacarejo das galinhas, fazia a festa dos adultos que bebericavam um mata-bicho debaixo da mangueira em frente à Padaria do Português. Os meninos se empurravam, arranhavam, chapinhavam nos charcos, se rasgavam nos espinhos unhas-de-gato e se queimavam nas urtigas que infestavam o matagal. Não importava por onde a galinha corria ou voava. Se ela passava no matagal ou na lama do charco, a matilha de curumins ia atrás. Incansáveis! Por fim, um curumim enlameado, arranhado e queimado de urtiga, dava um urro de exultação e surgia com a galinha segura pelas asas, estufado de orgulho.

 

O resto da matilha, ao ver uma das prendas presa, bem firme pelas asas, redobrava a sanha para capturar a companheira da fujona. Em poucos minutos ouvia-se outro rugido de alegria, para consternação dos demais curumins. Naquele domingo, dois afortunados iriam se regalar com coxa de galinha e kisuco até se fartar.

 

Na hora do almoço, a dona da casa recebia os dois "heróis" vestidos com a roupa de ver Deus, sapatos lustrados, camisa branca, calça curta segura por suspensórios e os cabelos crespos rebeldes, domados por uma grossa camada de brilhantina. O papo, estufado que nem pombo emproado.

 

E assim, eles passavam os anos dourados da infância naquele ambiente rústico, insalubre e infestado de moléstias endêmicas e verminoses..

 

-o-

 

A vida daqueles curumins, transcorria sem quaisquer responsabilidades, a não ser a obrigatoriedade da escola e o catecismo nas manhãs de domingo na Igreja do Padre Mário, no Bairro do Areal.

 

Mas o Tempo, esse deus implacável, mantinha as Areias da Vida escorrendo pela sua ampulheta, inexoravelmente. E os curumins cresceram e se tornaram adolescentes.

 

Sem nem perceberem, os folguedos de crianças foram perdendo a graça.

 

Jogar pião no terreiro? Perda de tempo!

 

Jogar bolinha de gude e descer ladeira montado num rolemã? Sujar e ralar os joelhos? A troco de quê?

 

Dar cangapés nos outros e empinar pipas? Já não tinha mais graça!

 

Guerra de mamona com baladeiras? Coisas de crianças sem ter o que fazer!

 

Alguns, com as primeiras penugens da barba precoce, começaram a trabalhar de dia e estudar à noite.

 

Outros, mudaram de cidade… Foram estudar fora. Eram filhos de famílias “remediadas”. Tinham algum dinheiro ou parentes em outras cidades. Nas férias escolares, voltavam cheios de empáfia, esquecidos dos antigos companheiros!

 

Com o tempo, alguns tornaram-se doutores, funcionários públicos, empreendedores ou comerciários. Uns poucos desafortunados… presidiários.

 

E o tempo? Pois é! O tempo… Com o tempo, foi-se operando o milagre do desabrochar da vida. Curumins virando homens, e meninas virando mulheres.

 

Em dado momento, os ex-curumins, em grupinhos aqui e acolá, começaram a perguntar-se:

 

E a Ritinha? A Mariazinha? E a Dorinha? A Aninha? E aquelas meninas magricelas com pernas finas parecendo cambitos, e joelhos tal qual broas de milho? Sumiram?

 

Não! Emergiram da infância para a puberdade!

 

No lugar das meninas chatas, pele e osso e sem graça, surgiram, da noite para o dia, umas moças de formas arredondadas, coxas torneadas, seios empinados, cinturinha de pilão e cabelos amarrados em elegantes rabos de cavalo, ou presos com tiaras charmosas.

 

Quando elas passavam, de queixo empinado e indiferentes aos olhares surpresos,  súplices e ansiosos dos ex-curumins, agora jovens mancebos, deixavam uma suave brisa de colônias e águas de cheiro.

 

Nem adiantava fazer “fiu fiu”, elas não davam a menor atenção.

 

“Meninos bobos!” - comentavam entre si.

 

Nas tardes quentes do fim do dia do Porto Velho antigo, os rapazes reunidos em grupinhos na cabeceira da ponte de madeira que separava o Bairro Baixa da União do Bairro Mocambo, um ex-curumim, antigo campeão de cangapé, cutuca um companheiro com o cotovelo e comenta:

 

“Você viu? O Tonico outro dia, estava dando uns amassos na Dorinha… Era umas sete da noite, lá na trave do antigo campinho!”

 

“Vi! Ô, se vi... E só pra você saber, macho! Estou arrastando a asa para a irmã da Ritinha! Acho que ela está gostando… Outro dia, encostei a mão na mão dela, lá no balcão da padaria do português Manuel, e ela não tirou!”

 

“Pois é, macho! Mês que vem começa as festas juninas. Vai ter quermesse, quadrilha e bate-coxa por todo lado. Não tem jeito, vou terminar as festas de mão dada com um desses brotos aí... Duvida, macho?

 

E o tempo... Ah! O Senhor Tempo… Continuou escorrendo a areia da Ampulheta da Vida. Os flertes se transformaram em namoricos, os namorados ficaram noivos, casaram e se tornaram pais de família que geraram novos curumins mais civilizados, que por sua vez, geraram outros curumins.

 

Curumins modernos…  com iPhones, tablets e notebooks conectados em 5G. Competindo em jogos eletrônicos de guerras, corridas de carros, motos e aventuras espaciais… Tudo “on line”!

 

No entanto, no fundo... no fundo… Não deixam de ser o que seus pais um dia foram. Curumins moderninhos. No entanto,  Curumins!

 

Hoje, aposentado e residindo em João Pessoa, capital do fantástico Estado da Paraíba,  quando vejo crianças brincando na segurança dos playgrounds das pracinhas no Bairro Jardim Oceania sob os olhares desatentos de mães preocupadas com seus celulares, lembro com uma ponta de nostalgia, dos playgrounds amazônidas da minha infância selvagem.

 

Outro dia, passeando no calçadão da Praia do Bessa, acompanhado do meu neto, um garoto esperto de quase sete anos, vimos outras crianças tomando banho e brincando de fugir das ondas que quebravam mansas na praia.

 

Meu neto parou e perguntou:

 

“Vovô, quando você era menino, como é que você brincava?”

 

Dei uma gargalhada e o convidei para sentarmos na mureta do calçadão, de frente para o mar. E olhando o horizonte do lindo entardecer, contei para ele como era que os curumins se divertiam na aldeia onde nasci e cresci.

 

Ele me olhou com os olhos arregalados e comentou:

 

“Credo, Vovô! Vocês eram todos malucos, doidos, né?”

 

No céu rubro do entardecer na linda Praia do Bessa, um gavião planava em círculos acima do ninho de uma coruja na vegetação rasteira da praia. Apontei para o predador e disse:

 

“Garoto, estás vendo aquele gavião voando em círculo ali. O nome dele é carcará! Veja que ele voa livre e despreocupado, esperando uma oportunidade para capturar a janta ou a primeira refeição do dia. Pois é! Os curumins eram assim: selvagens e livres. A única coisa que os preocupava, era a própria sobrevivência!”

 

“E aldeia, Vovô? Você nasceu numa aldeia?”

 

“Calma, garoto! Vou te explicar… Aldeia, era como os antigos moradores de Porto Velho se referiam, com carinho, à cidade. Era uma forma de dizer que o lugar era tão pequeno, que parecia uma aldeia, onde todos se conheciam! Entendeu?”

 

“Mais ou menos! Mas uma coisa eu não ‘tô entendendo, Vovô!”

 

“O quê, garoto?”

 

“Porque é que você nunca me chamou de curumim? Eu não sou menino como você foi?”

 

“Não, garoto! Não é… É melhor do eu fui! Você é vacinado, mora num condomínio com porteiro e vigilância 24 horas por dia. E o melhor de tudo… Tem educação de qualidade, boa alimentação, conforto da cidade grande e moderna, e plano de saúde!”

 

“E os curumins não tinham nada disso?”

 

‘Não! Não tinham… Somente uns poucos afortunados que tinham fome de saber e que frequentavam as aulas de reforço do Padre Giovanni, um gaúcho descendente de italiano -  um homem generoso que dedicou anos de sua vida para ajudar os curumins que queriam ser ajudados naquela parte pobre e miserável da cidade -, conseguiram esses benefícios… Mas isso só aconteceu muito tempo depois. Após anos de muito esforço e estudo!”

 

O garoto olhou para mim, e sorriu… Passei a mão sobre os seus cabelos rebeldes e falei:

 

“Mas não se preocupe! Vou tentar passar para você, tudo o que os Curumins e o Padre Giovanni me ensinaram de bom. Determinação e fome de aprender! Por exemplo: na próxima vez que a gente for tomar banho de mar, vou lhe ensinar a dar cangapé. Ok?”

 

E no ocaso da vida que o Tempo, às vezes, generoso, concede aos afortunados pela relativa longevidade, fica o registro de uma frase inscrita em uma placa indicativa na esquina de uma rua do bairro Jardim Oceania.

 

A frase é atribuída a Ariano Suassuna. Um paraibano da gema, adotado com muito carinho pelos pernambucanos.

 

A TAREFA DE VIVER É DURA, MAS FASCINANTE!

 

João Pessoa-PB
Nov/2021

 

Glossário:

1 -  O Projeto Rondon foi instituído em 1967, quando uma equipe formada por 30 universitários e 2 professores de Universidades do antigo Estado da Guanabara conheceram de perto a realidade amazônica no então Território Federal de Rondônia. A primeira missão teve duração de 28 dias.

2 - Cangapé: Ato de mergulhar e dar uma cambalhota com uma das pernas batendo sobre a superfície da  água. Nos rios, lagos e  igarapés da Amazônia, os meninos, brincando, tentam acertar uns aos outros com o calcanhar. Brincadeira extremamente perigosa.

3 - Torite: Como no jogo de bilhar, o competidor tentava fazer a sua bolinha bater na mesma jogada, em duas, três ou mais bolinhas do adversário. Quem perdia, não perdia somente o jogo. Perdia as bolinhas também.

4 - Cerol: material cortante preparado com vidro moído e cola que é passado nas linhas usadas para empinar pipas de papel. Essa linha entra em contato com outra, corta-a, derrubando a pipa adversária.

5 - Curumim: Palavra de origem tupi, e designa, de modo geral, as crianças indígenas e os caboclinhos ribeirinhos, irrequietos, peraltas.

6 - Trinta e um. Alerta!: brincadeira onde um grupo de crianças sorteia um participante para, com os olhos vendados, contar até 31. Durante a contagem, os demais se escondem para dificultar a localização pela criança que fez a contagem.

7 - Rouba Bandeira: primeiro, demarca-se uma área de 60 passos de comprimento por trinta de largura. Depois dividi-se o comprimento ao meio.  Nas área demarcadas, cada grupo ocupa um lado, com sua bandeira postada ao fundo. O objetivo é roubar a bandeira do grupo adversário e trazer para o seu campo. Se for tocado pelo adversário, vira estátua. após o quê, só é liberado se for tocado por um companheiro.

8 - Lobisomem, Mula Sem Cabeça e Papa Figo: Lendas do folclore nordestino, levadas pelos sertanejos que migraram para a Amazônia, durante o Primeiro (Revolução do Acre - 1899/1903) e Segundo Ciclo da Borracha (Segunda Guerra Mundial - 1939/1945) para trabalharem na extração do látex.