Esfolhadas e outros costumes do séc. XIX

Era assim, nas aldeias circumpostas à nossa!

Um mancebo, à noite, toma o seu caldo. No fim, dirige-se a um postigo a ver para que lado se canta, enfia em seguida as suas botas de montar, agarra no seu gabinardo, lança unha da manta de sua cama, deixando, por onde passa, grande rastolhaço de pulgas, e, enterrando os pés nos lamaçais e gramando, de espaço a espaço, com uma silva pelas ventas, lá caminha esbaforido até ao lugar aonde se faz a desfolhada.

Chegando lá, encontra, pendurada num bareiro, uma candeia de gás ou graxa, dando uma luz pálida, e aí toma algum tento e pàra. Olha para a carreira das raparigas, e lá as vê com o seu colete branco como a neve, lenço vermelho ao peito, cabelo muito luzidio, devido ao azeite de algum candeeiro e, quando veem algum magnate, chegando elas as caras e as bocas para junto umas das outras principiam a cantar: – O ora anda, ora anda, cantiga do tempo de Adão e Eva.

Abrem umas goelas medonhas, atiram com a língua pela boca fora quase palmo e meio, arregalam uns olhos como púcaros, e sai-lhe daquele peito uma voz tão roufenha e tão destemperada que parece quase as vozes dum rebanho de cabras velhas.

O rapaz, deixando-as acabar o seu cantochão especial, dirige-se e pede-lhe para se assentar. Se é namoro assenta-se ao lado e, se não é, fala apenas de frente. Principia por pedir-lhe algumas maçãs ou nozes; a rapariga olha-o de frente, se gosta do tipo presenteia-o com algum mimo, se não gosta, diz-lhe: «vá-se embora que estão ali meus pais» ainda mesmo que não estejam. O rapaz então, se ela lhe admite treta, desenrola a sua lógica amatória e ela, toda espremida, responde-lhe alegremente mostrando ainda entre os dentes alguma casca de feijão do caldo da ceia. Ali estão aqueles amantes, tré tré, até à meia noite, uma hora, apanhando frio, contentes como cucos, e depois aí se ouve no fim da esfolhada o som duma viola do tempo de D. Afonso Henriques a chamá-los à dança – do velho da cana verde regadinho etc etc

Eles e elas com as suas alparcas dão saltos bravios e tão altos que os espectadores, tendo amor aos queixos, é desviá-los, do contrário levam com o bico duma bota até ao nariz ou à testa.

O dono da eira de terra, impelido pelos grandes tropéis, manda-os parar quando não os tacões fazem da eira grandes cavernas.

No fim de tudo despedem-se uns dos outros, tornam-se a agarrar aos gabinardos e à manta e dirigem-se cada um para suas casas muitos alegres da sua vida.

ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 16/11/2021
Reeditado em 19/11/2021
Código do texto: T7386840
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.