Nocaute
O barulho do motor da geladeira traz alguma vida à casa.
O telefone toca, e eu deixo tocando:certamente é cobrança.
Os meus amigos sabem o quanto venero o silêncio de uma sexta à noite.
Não ligariam.
Corpo cansado, alma e corpo destilando meus exageros com café.
O gato que não tenho me olha; um ronronar chechelento que irrita, seu rabo amarelo toca minhas panturrilhas. Bato o pé.
O café esfria, o lápis tremula:
__ Está chegando o momento que descreverei você!
Uma formiguinha rodopia no papel, não ouso matá-la. Foi embora. Estou com êxtases de agora.
Já não sei iniciar a descrição.
Deveria tê-la começado quando o conheci.
O que posso dizer apenas, é que você não tem sorriso: tem nocaute.
O olhar que meu pai tinha, quando vencia um dia de trabalho no campo, um dia de chuva.E toda a minha admiração por isso, papai, ele nunca irá saber.
Força física, olhar de ancião, tendões estralando após o banho com a água aquecida na lata, no fogão à lenha. Café e palheiro. Cerimônia da rotina da infância. Saudades da infância, quando tive pai.
O contrário, quase tudo contrário do que penso habita sua mente. Discordia com sensibilidade, um tapa de veludo na alma.
Despertou-me com os seus ouvidos e esvaiu-se entre meus dedos.
Ouvidos valem mais que beijos.
Ser ouvido é um ato de amor. Quem encontra alguém que sabe ouvir, encontra ouro.
Mas não quero que volte. Êxtases matam.
Covarde,fujo.
São muitos nocautes.