Ela
Os outros a chamavam de diferente ou excêntrica. Ela se sentia original.
Desde sempre fora assim. Desde que se percebeu e pode se expressar.
Para desespero da mãe: nada de saias, só calção. Entre o rosa, preferia o azul. Cabelos – o ideal de raspá-los (para sentir o vento tocar seu pescoço nas corridas com os meninos), cedia, porém, diante do choro da mãe; aceitava-os curtos, sem penteados.
Já não doíam os olhares resignados, as cabeças balançando contrariadas. Há muito havia se curado da culpa. Há muito decidira somente ser.
A mãe, ao contrário, não havia se curado. Questionava-se em lamentos silenciosos. Sonhava, esperava.
O crescimento proporcionou o requinte das inadequações sociais. Nem maquiagem, nem vestidos rendados, as águas de flores provocavam espirros. O vácuo deixado pela ausência de gostos femininos foi preenchido pelas bermudas, jogos de bolinhas de gude, chutes a gol e ossos fraturados.
Os castigos do pai insuficientes, apenas, instigava seu espírito de liberdade desafiadora. Quantos castigos, tantas fugas.
Os pais quase sentiam o luto pela "filha perdida". A vizinhança sussurrava. Os preconceitos daquela cidade interiorana borbulhavam em falatórios.
E ela, já compreendendo a previsibilidade, surpreendeu.
Olhou-se no espelho e, pela primeira vez, enrubesceu. Pernas marcadas, pele empoeirada, cabelos despenteados. Iniciou com uma roupa de algodão, sem enfeites, achou bom o caimento. Passou para os babados. Aprendeu a usar saltos e ajudar a mãe em casa.
Pelo milagre, todos oravam. Por um mês, rezou-se o terço em família. A mãe subiu a escadaria da igreja de joelhos, a agradecer pela filha.
Se milagre ou não, a mudança possuía nome e endereço.
Diante da descoberta, houve furor, mas para apressar os atos. Era o medo da recaída. E o pretendente foi recebido diante de extremos sorrisos.
De senhorita viu-se senhora. E, talvez, aquela fosse a melhor das mudanças, se o tempo não fosse tão revelador.
Sua vida passou a ser arroz com feijão, vassoura e sabão. O tédio do amanhecer não lhe permitia enxergar o sol, ouvir os pássaros. Tudo era uma música enganchada – programado, sem mais emoções.
E seu estado foi se tornando gélido. Inexpressiva. Seca. Dura. Pálida. Muda.
Da notícia, soube em casa, depois de por a mesa do jantar. Mais tarde iriam ao circo, o último dia de espetáculo.
Obediente ao determinado, resignou-se mal humorada e foi.
Assustou-se com o que viu. As Luzes de doer os olhos, a agitação tonteando, os risos soltos e o cheiro sujo de poeira doce quebraram seu coração. Reencontrou-se (ou morreu e renasceu?). Sentiu: voltava a ser.
Retornou para casa com um brilho suspirante no olhar e um sorriso de canto, mal disfarçado. Dormiu em agitada paz.
Pela manhã, uma lateral da cama vazia. Na sala, banheiros, cozinha – o silêncio. Nenhum bilhete, o nada.
Não foi encontrada.
E o circo havia ido embora.
Os outros tornaram a chamá-la de leviana. Indiferente, ela se sentia feliz.