O fantasma das correntes da avenida
O fantasma das correntes da avenida (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Quaresma do ano de 1932. A avenida era uma extensa rua, com aclive de mais ou menos quinhentos metros e declive de perto de seiscentos metros. Ainda construída de terreno em terra batida, casebres e casas sendo erguidos em meio a barrancos. Logo abaixo, no vale onde se encontravam o aclive e o declive, um pequeno riacho cortando e sendo alimentando com várias nascentes e um pequeno brejo.
Dona Maria nasceu em um casebre bem perto do riacho. De família humilde, tendo mais de cinco irmãos, o pai era funcionário da prefeitura municipal e a mãe era professora no recente curso ginasial implantado na cidade. Ela, como criança da época, nasceu, cresceu, estudou e casou. Permanecendo ali por toda a vida. Teve filhos e uma excelente aposentadoria na empresa de correios e telégrafos.
Ficando viúva, alguns filhos foram trabalhar e morar na capital mineira. Morando apenas com a neta, que não quis sair da cidade, estudou e arranjou um bom emprego na Comarca. Dona Maria permanecia ali entre os livros, os textos e uma função de tradutora de livros internacionais.
Em uma manhã do mês de novembro, quando eu passava com a câmera fotográfica nas mãos e tirando algumas fotografias de flores e pássaros, ela me chamou e contou-me a seguinte passagem:
“- Quaresma do ano de 1943. A população da cidade se isolava durante a noite, pois todas as quartas-feiras e sextas-feiras, na mesma avenida, eram ouvidos vários sons muito estranhos. Eles eram bem diferentes dos barulhos normais. A impressão era de que várias correntes eram arrastadas no chão batido e de pedregulhos. Alguns se aventuravam a olhar pelas frestas das portas e das janelas, mas não viam nada. Nem mesmo os cães e gatos se arriscavam a por a cara para fora. Alguns cavalos e cabras do vizinho de Dona Maria não andavam pela rua nestes dias. Ficavam bem quietos e nem mesmo se mexiam.
As semanas da quaresma iam passando e nos dias específicos as correntes desciam e subiam constantemente. Somente terminavam quando o amanhecer do dia já era visto e sentido.
Padre, pastores e médiuns eram chamados para a investigação dos acontecidos, mas não chegaram a nenhuma conclusão.
Assim, pelos próximos dez a quinze anos, sempre na época da quaresma, estas correntes eram ouvidas e sentidas pelos moradores da avenida.”
Com o passar do tempo, a avenida foi sendo urbanizada. Casebres e novos palácios foram construídos. O chão batido foi dando lugar à pavimentação. Pedras foram implantadas e mais tarde uma longa camada asfáltica foi sacramentada. No centro, canteiros foram erguidos e flores plantadas. Antigos moradores deram passagens a novos habitantes. Morreram alguns, mudaram outros. Assim, com o passar do tempo, tudo isto foi acabando. Não se sabe ao certo o que poderia ser concluído sobre as correntes arrastadas pela avenida. Ficou para a estória dos casos de assombração.
Hoje, com o passar do tempo, pessoas mais velhas contam para crianças que a avenida era um lugar bem assombrado. As correntes eram arrastadas. Alguns disseram que eram as almas dos escravos que saiam chamando a atenção dos moradores e denunciando as atrocidades, os maus tratos e tudo de ruim que acontecia no período colonial do Brasil.
Assim, Dona Maria se foi para a eternidade. Um mês antes de falecer, ela me chamou e contou-me esta passagem. O rico detalhamento dos fatos chamou-me a atenção, pois ela me dizia com tanta firmeza. De vez em quando sorria e falava que não estava mentindo. Batia com os magros braços em minha perna. Nas mãos, vários anéis e duas alianças de ouro. Vestida com a saia estampada, a blusa combinando com a saia. O paletó marrom. Sobre o peito, o cordão de ouro e a cruz que tinha os nomes dela e do falecido marido. A data do casamento dos dois. Sentada em uma cadeira, que se localizava na varanda da casa da neta, ela me olhava e dizia este fato por várias vezes.