FRUTO DO MEIO ("Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos." — Anaïs Nin)

Naquela tarde de domingo, folheando o jornal local, deparei-me com uma notícia intrigante: o tema da redação do ENEM 2019 fora "Democratização do acesso ao cinema no Brasil". Um suspiro escapou-me, mesclando alívio e nostalgia. Finalmente, pensei, um tópico que fugia às discussões de gênero que dominavam os debates recentes.

O cinema, outrora chamado de "oitava maravilha do mundo", sempre foi um assunto rico em possibilidades para reflexão. Enquanto minha mente divagava pelas memórias de tardes passadas na penumbra acolhedora das salas de projeção, uma sombra de dúvida se formou. Será que os jovens vestibulandos, nascidos na era digital, conseguiriam ver além da superfície reluzente da tela grande?

Lembrei-me de uma conversa com meu sobrinho, que resumiu os filmes atuais como "só pancadaria e sacanagem". Suas palavras ecoavam com nova ressonância diante do tema do ENEM. É inegável que o cinema mudou drasticamente desde minha adolescência. As bilheterias parecem premiar cada vez mais o espetáculo vazio, a violência gratuita e o apelo sexual desmedido. Onde estão as narrativas que nos faziam pensar, que nos emocionavam sem recorrer aos instintos mais básicos?

Imaginei os jovens diante da folha em branco, tentando elaborar argumentos sobre a democratização do acesso ao cinema. Quantos conseguiriam enxergar além dos blockbusters hollywoodianos? Quantos teriam sido expostos ao cinema como forma de arte, como veículo de ideias e reflexões profundas?

Minha mente vagou para a alegoria da caverna de Platão. Não estaríamos todos, de certa forma, acorrentados diante de sombras projetadas? O cinema, que prometia ser uma janela para novos mundos, não estaria se tornando apenas mais uma parede em nossa caverna moderna?

As instituições que deveriam ser guardiãs de valores elevados - famílias, escolas, igrejas - parecem ter se rendido a uma cultura que celebra o choque e o escândalo. Onde está a cultura que cultivava o intelecto, a moral, o espírito? A discussão sobre a democratização do acesso ao cinema poderia ter seguido caminhos inesperados, abordando não apenas a disponibilidade física dos filmes, mas também o conteúdo e seu impacto na sociedade.

Folheando mais algumas páginas do jornal, uma manchete sobre conflitos em um país distante trouxe à tona a lembrança das atrocidades que a humanidade é capaz de cometer. Por que, mesmo em meio ao caos da guerra, o ser humano ainda encontra espaço para a crueldade do estupro? Essa reflexão me fez questionar o papel do cinema na formação de nossa percepção sobre violência e sexualidade.

O cinema, como qualquer forma de expressão humana, é um reflexo de quem somos. Se o que vemos na tela nos desagrada, talvez seja hora de olharmos mais profundamente para nós mesmos. A verdadeira democratização do cinema não deveria ser apenas sobre abrir portas para que todos assistam aos filmes, mas sobre permitir que todos possam ver o mundo com olhos críticos e reflexivos.

Enquanto me levantava para fazer um café, pensei nos milhares de jovens elaborando suas redações. Esperava sinceramente que alguns deles conseguissem enxergar além das sombras, encontrando nas entrelinhas desse tema aparentemente simples a oportunidade de questionar, sonhar e propor um cinema - e um mundo - diferente.

Afinal, não é isso que a verdadeira cultura deveria fazer? Elevar-nos acima de nossa condição atual, lembrar-nos do que há de divino em nós, inspirar-nos a respeitar e celebrar o milagre da vida em todas as suas formas?

Com esses pensamentos, dirigi-me à estante de DVDs, decidido a revisitar alguns clássicos. Talvez fosse hora de acender algumas luzes nesta caverna, reconhecendo as correntes invisíveis que nos prendem e buscando a luz da verdade, mesmo que isso signifique enfrentar as sombras mais desconfortáveis de nossa própria existência.

Duas questões discursivas sobre o texto:

1. O autor expressa preocupação com a qualidade do conteúdo cinematográfico atual e seu impacto na formação dos jovens. De acordo com o texto, quais são as principais críticas à indústria cinematográfica contemporânea e como elas influenciam a forma como os jovens percebem o mundo e a si mesmos?

Esta questão convida os alunos a refletir sobre a relação entre a cultura popular e a formação da identidade, analisando as implicações do consumo de determinados conteúdos audiovisuais.

2. O texto estabelece um paralelo entre a alegoria da caverna de Platão e a experiência cinematográfica contemporânea. Explique essa analogia e discuta como ela pode ser utilizada para analisar o papel do cinema na sociedade atual.

Esta questão estimula os alunos a aplicar um conceito filosófico clássico a um contexto contemporâneo, promovendo uma reflexão crítica sobre a função do cinema e sua influência na construção da realidade.