Memórias de um zelador de cemitério

Após mais de 30 anos na função de zelador do cemitério municipal, Zacarias Filho se aposentou. A vontade era continuar, mas o novo prefeito o aconselhou a descansar. Dever cumprido uma pinoia. Promessa de emprego, alegava Zacarias que sempre primou pelos bons serviços.

Mas ele também primava por marcar o ponto em bares com amigos do copo. E a cada nova morte - entre um gole e outro -, os comentários eram inevitáveis. Alguns ácidos. E Zacarias lembrava: “Isso vai estar no meu livro de memórias”. Com ironia era lembrado que mal sabia escrever o nome. “Mas tenho uma sobrinha que é pedagoga”, dizia com orgulho. “E só será publicado depois que eu for para o andar de cima”.

Solteiro e sem afazer, resolveu morar com a irmã no litoral. Só por uns tempos, prometeu. 12 anos depois, Zacarias foi pra sempre. Sabedores da notícia, três de seus amigos dos bons tempos resolveram procurar a pedagoga para saber ‘se e quando’ o livro de Zacarias seria editado.

A sobrinha os recebeu com frieza e de posse de um velho caderno, consultou a primeira página perguntando por nomes.

- Nicolau? Resposta: Já morreu! Fidélis? - Também. - Zinho? - É eu! - Jacir Barbosa? - Não morreu, mas é o mesmo que tivesse. - Geraldo Silva? - Sou eu... - Martinho? - Morreu faz uns três meses. - Adão da Lenha? Aqui, eu! E a lista seguiu com mais 15 nomes já ausentes nesse plano.

- Zinho, Geraldo e Adão... Vou ter que esperar pela partida de vocês para mandar imprimir o livro... Ah, e quero seus nomes completos.

- Mas o livro não é sobre assombração? Da história do túmulo da noiva que amanheceu aberto? Da grã-fina que ia todo sábado orar na tumba do homem que nem era seu parente? Dos prantos e desmaios na hora de sepultar? Perguntaram os três ao mesmo tempo.

- Não. Respondeu a pedagoga. É sobre os comentários que ‘vocês’ faziam a respeito das pessoas que haviam falecido.

Na primeira esquina Geraldo reclamou. - O filho da puta comeu nosso fígado em vida. O que os familiares dessas pessoas irão dizer? Zinho, aborrecido, fez o convite para um gole no bar do Peludo. – Lá não tem mais cachaça boa, disse Geraldo. E Adão concluiu: - Depois dessa tem que ser da boa mesmo. E não sabia escrever...