A VIDA SEGUE
No telhado do Conservatório, pombos se acasalam. É primavera; talvez por isso esteja chovendo tanto neste outubro. Hoje, contudo, parece que não choverá: nuvens de chumbo se afastaram, já entrevejo sinais da imensidão azul.
Na praça, as barraquinhas da feira já estão montadas, aguardam os legumes, as verduras, as frutas e, claro, os consumidores. Os pombos continuam o bailado. Um homem vai empurrando a bicicleta vermelha, a senhora à janela observa o movimento das ruas, maritacas brincam alheias ao que vai pelo mundo.
Acordei ainda a pouco, com a escrivaninha cheia de asinhas de inseto. Dizem que são cupins; entraram ontem à noite pelas frestas da janela, enquanto chovia. Sempre vêm nessa época do ano, em busca do calor das lâmpadas. Há asinhas por toda parte, inclusive sobre os poemas de Álvaro de Campos que adormeceram ao lado do copo meio cheio.
Antes de vê-los, contudo, zanzei pelo celular. Ainda deitado, ainda sonolento sorvi um pouco do que há de pior no mundo pela tela de quase sete polegadas. E o mundo não acordou feliz: perde-se Gilberto Braga. É difícil falar sobre a perda de artistas que se admira. Como bom noveleiro que sou, passei horas e horas de minhas noites diante da telinha assistindo às suas tramas. Quanta elegância e sofisticação tinham suas personagens, quanto ritmo tinham suas histórias... como era bom ver seus vilões em ação: Odete Roitman de Vale Tudo, Laura de Celebridade, Higino Ventura e Idalina de Força de Um Desejo, o Léo de Insensato Coração entre outras grandes e inesquecíveis personagens. Tramas urbanas, regadas a muita corrupção e ambição, arrivismo e competição, amores e dramas, comédia e crítica. As tramas de Gilberto eram a síntese do Brasil, contada capítulo a capítulo, meses a fio.
Tentar descobrir quem matou quem, como a mocinha se deixou levar pelo crápula, por que o casal se desfez, como assim ele vai ceder à chantagem?, que segredos a família esconde, torcer por este ou aquele personagem, esperar ansiosamente pelo derradeiro capítulo para dizer “que pena que acabou”... como é prazeroso se envolver em uma história que sabemos ser ficção e que, no fundo, sabemos ser também bem real... Gilberto fez ecoar em minha mente o verso “que país é este” onde os inescrupulosos, os corruptos, os salafrários, os chantagistas vencem. Desde 1989 tentamos digerir a banana que Marco Aurélio de Vale Tudo nos enfiou goela abaixo, rindo de nós a voar em seu jatinho para algum paraíso fiscal. Se existe televisão no Além, espero que estejam exibindo uma novela do Gilberto quando eu desembarcar lá.
Enquanto busco palavras, o sol começa a lamber os telhados, a brisa ainda umedecida passa pelo meu quarto, o canto monótono de um bem-te-vi vem não sei de onde. Os pombos se foram. Preciso limpar a escrivaninha, tirar estas asinhas nojentas daqui, recolocar o Álvaro de Campos na estante. A vida segue. A este cronista-noveleiro só resta lamentar a morte de Gilberto Braga. E seguir meu caminho levando, claro, um guarda-chuva. Vai que chove de novo...