Totó.
Meu amigo, minha amiga, muito prazer. Você que não tinha coisa melhor para fazer e decidiu dar um tempo nas suas tarefas para ler esta crônica, eu vou já informá-lo antes mesmo de começar: aqui, leitor, você não aprenderá nada de coisa nenhuma. A ideia é divagar nas lembranças, única e exclusivamente. Se você continuar na leitura depois de ter sido avisado, ficará por sua conta, espero que consiga descontrair um pouco, pelo menos.
Parei o que estava fazendo e aqui me encontro porque vi o Sérgio Loroza conversando com o Rodrigo Hilbert num programa na TV, ele dizia que, na sua juventude, adorava jogar “totó”. Aí, lembrei-me que nos meus idos 15, 16 anos colocaram um brinquedo desses no bar que havia na rua onde moro desde criança, foi onde conheci o jogo, aprendi a brincar e disputava as partidas com os amigos mais próximos, aqui mesmo na nossa localidade. Porque ganhava mais do que perdia e com isso o dinheiro rendia, ficava várias horas do dia envolvido nessa brincadeira; meus adversários, furiosos, revezavam a vez tentando me derrotar. Eu achava que era craque, mas tinha um amigo no grupo, o já falecido Danilo, que disputava comigo de igual para igual. Confesso que ele até ganhava mais vezes do que eu quando disputávamos os dois. Éramos vizinhos, nossas famílias conviviam feito parentes; com tamanha familiaridade era fácil nos encontrarem juntos, principalmente no campo de futebol, na nossa quadra. Um dia, só lembro que era final de semana - sábado ou domingo, não tenho certeza - combinamos de curtir a noite num clube que havia de frente para a praça principal do nosso bairro; lá tocavam músicas para dançar e havia muitas garotas; naquela época, este era o principal point da nossa galera. E foi assim, de banho tomado, arrumados e perfumados, que saímos de casa atrás de divertimento. Era cedo ainda, a bilheteria na porta do grêmio encontrava-se fechada e sem aglomeração, então saímos caminhando pelo entorno até decidir beber alguma coisa. No buteco onde paramos havia um salão espaçoso, e, no centro deste, colocaram uma mesa de totó; ainda de longe ouvimos as pancadas estridentes da bola e nos aproximamos curiosos. Duas duplas disputavam a nega na hora em que entramos, aproveitamos para apreciar o final do jogo. Era a nossa primeira vez no local, não conhecíamos os frequentadores nem eles à nós. O móvel era de alto padrão, imponente, pesado, todo forrado de fórmica, dentro e fora, uma beleza! Muito superior ao que estávamos acostumados. Foi ali que conheci esse tipo de acabamento e fiquei fascinado. Terminada aquela partida, os jogadores abandonaram a mesa no meio do salão. Desejando experimentar o brinquedo peguei num manete, empurrei, puxei e girei os bonecos com muita facilidade; o Danilo fez o mesmo do lado oposto. Caramba! Foi a nossa exclamação. Muito leve! Imediatamente solicitamos uma ficha ao comerciante. Um camarada encostado ao balcão, mais velho do que a gente, ouviu o nosso pedido, achegou-se de nós e, diante do meu amigo, perguntou se topávamos disputar aquela ficha com ele.
- Dois contra um, você tem certeza? Danilo, surpreso, perguntou para confirmar o que acabara de ouvir.
- Sim!, ele confirmou naturalmente, e disse mais: - Se perder eu pago, pode confiar.
Reprimindo o sorriso, eu e meu amigo trocamos olhares de assentimento e assumimos as nossas posições, ambos calados. Eu fiquei encarregado de proteger o gol e trabalhar a defesa, Danilo assumiu o meio de campo e o ataque; a gente estava confiante, na certeza de fazer uma enxurrada de gols. O sujeito do lado oposto da mesa, sozinho para dar conta dos quatro manetes, tinha a expressão mais tranquila do mundo que alguém naquela condição em que ele se encontrava podia apresentar. Era o que eu achava, e, ainda hoje, passados mais de 40 anos, guardo lembranças tanto do momento quanto dessa impressão que eu tive na época. Meu colega lançou uma moeda para o alto e ganhamos o cara ou coroa, escolhemos o lado com acesso ao gavetão. Eu, que prefiro o time do Santos, pensei com meus botões, acho que começamos bem.
Coloquei uma bola em jogo para iniciar a partida. Esta primeira caiu nos pés do nosso jogador, resvalou pra borda oposta onde colidiu e escapuliu para o lado palmeirense; o nosso adversário não teve trabalho, enquanto a redonda rolava sobre o gramado de volta para a lateral do nosso lado, ele acompanhou seu deslocamento com seus bonecos a postos, até que, de súbito, lançou um exocet do meio de campo. O cara girou o punho ao mesmo tempo em que puxou o manete, o boneco chutou forte com o pé entre o centro e a lateral da pelota, se é que você entende o que tento explicar. Parecendo teleguiado o míssil disparado percorreu uma leve diagonal sem obstáculo, desviou da marcação severa do meu parceiro, cruzou todo o nosso campo de defesa, atravessou entre o zagueiro e o meu goleiro e, GOL! Se você faz questão de saber, caro leitor, eu, na verdade, nem vi isso acontecer. Deduzi pelas evidências, tal qual um perito em balística. Acatamos o cartão de visitas com dignidade.
Placar: 0 X 1.
O Danilo empurrou a segunda bola no cachimbo, esta atravessou o gramado, chocou-se contra a borda e recuou de volta, exatamente na direção dos pés do nosso ultimo jogador na barra central; meu amigo esperou ela bater na beirada e retornar fugindo da marcação adversária, nada fácil de conseguir, até que bateu do meio-campo, firme, consciente, mas o goleiro do Palmeiras, bem posicionado, rebateu; a pelota deslizou vagarosa em direção ao jogador de defesa deles, o cara apoiou seu zagueiro direito com os pés sobre a redonda e largou o manete da defesa para girar os outros dois, ataque e meio de campo, e deixou os bonecos de cabeça para baixo a fim de que nenhum deles atrapalhasse a trajetória do seu chute. Jamais havíamos visto um jogador fazer isso. De volta pra defesa ele empurrou a bola de um zagueiro para o outro fugindo da nossa marcação implacável, meu parceiro estava conseguindo acompanhar atento; na nossa pequena área eu cuidei de também seguir o deslocamento da redonda movendo os dois, tanto o goleiro quanto o zagueiro, para bloquear um possível chute em linha reta; e foi num piscar de olhos, porém, que o cara mandou o outro tiro de canhão. O petardo explodiu na borda de fundo bem próximo do meu gol como se estivesse destruindo a mesa, e regressou para o meio de campo feito um elétron carregado de energia. O Danilo foi ágil, conseguiu dominar a pelota e chutar rápido do meio de campo mesmo; ela acertou o boneco de defesa palmeirense, ricocheteou pra beirada de fundo, do outro lado da mesa, e resvalou sem sair da intermediária adversária. Novamente o sujeito foi eficiente, parou a criança no seu campo de defesa e repetiu o procedimento anterior, dessa vez colocou seus bonecos na posição horizontal fora de qualquer alcance, depois retomou a defesa, recuou a redonda do beque pro seu goleiro e este bateu do meio do gol sem marcação, o tiro atravessou o campo, vazou o nosso time inteiro direto para dentro do gavetão. Fiquei abismado de ver o cara chutar para gol com o goleiro. Permita-me uma observação de retificação, pois aqueles não eram chutes, nosso oponente fazia disparos com arma de grosso calibre. Deu vontade de chamar a polícia, sério! Olhei o ambiente ao redor, o bar estava praticamente vazio, engoli em seco. Dois gols relâmpagos sem que tivéssemos tido tempo de aquecer. Tudo bem.
Placar: 0 X 2.
Jogamos pra conta do azar os dois primeiros pontos marcados pelo adversário e mantivemos a calma. Meu parceiro fez cair a terceira bola em campo. A redonda rolou de uma margem a outra duas vezes seguidas sem que os bonecos pudessem alcançá-la até que parou estática no meio de campo. Num torneio oficial, para reiniciar o jogo, em caso semelhante, o Danilo deveria colocar a bola com a mão nos pés do nosso jogador central de meio de campo. Nós não tínhamos esse compromisso com a regra, ele simplesmente recolocou-a pelo cachimbo mesmo. Ela caiu no campo e deslizou vagarosamente para o nosso time, meu parceiro usou seu último jogador na barra central, ao lado da borda lateral, para dominar a redonda; compenetrado a empurrou para o volante no centro de campo, sua jogada tradicional. O sujeito estava atento e acompanhou seus movimentos com marcação acirrada. Danilo chutou mais para o lado da bola, de leve, para que ela saísse na diagonal; a sua trajetória conseguiu enganar o oponente e chegar até o nosso atacante, que a prendeu com os pés levantados à frente apoiados sobre ela. Batendo e puxando sem deixá-la escapulir, conduziu a pelota até ela ficar frente a frente com o gol palmeirense, então parou e começou a girar o boneco em torno da bola no sentido relógio, este considerado o drible mais teatral desse jogo. Na terceira volta ele já empurrou e chutou puxando o manete para que a bola seguisse na transversal invertida. O chute foi perfeito, bonito, e a defesa, espetacular! O cara era muito bom! Tive que admitir. Amortecida pelo goleiro, a redonda correu de volta para os pés do nosso jogador, o zagueiro esquerdo adversário não deixou, interceptou-a no meio do caminho com um chute violento para trás. Ela explodiu na borda de fundo e resvalou, atravessou o campo inteiro até bater na borda do nosso lado. Eu sofria uma impressão atrás da outra com o volume de novidades que o desconhecido conseguia apresentar. Após o impacto já do nosso lado, a bola retrocedeu com menos velocidade; dominei e prendi a redonda parada na lateral, arrastei-a para o meio da nossa grande área e chutei, fiz isso muito rápido. O nosso oponente fez o que eu nunca tinha visto antes, acompanhou o deslocamento da pelota com marcação ferrenha e rebateu o meu chute. Resultado, Gol novamente. Você ficou paralisado aí na sua cadeira? Lá no jogo eu também fiquei sem reação. Caaara!!! Que humilhação!
Placar: 0 X 3
Quarta bola em campo, aquela era a nossa chance de reagir para virar o jogo a nosso favor, e, quem sabe, ganhar a ficha. Foi uma partida disputada, com ataques e defesas de ambos os lados. Recuperei algumas bolas que ricochetearam nas bordas de fundo ao lado do nosso gol, e só consegui furar a marcação adversária, com chutes na lateral da redonda, porque saíam na transversal; de frente, em linha reta, era muito difícil, eu me dei conta de que não tinha velocidade para disputar com o sujeito desconhecido, infelizmente. Danilo recebeu e dominou alguns desses meus passes sem conseguir efetuar um único gol, e usou de suas habilidades para marcar o cara, mas não foi eficiente o suficiente. Uma hora o palmeirense colou a bola contra a borda lateral e usou seu jogador meio-campista, na extremidade da barra, para imprensa-la com uma pancada forte; a redonda saiu feito um raio como da primeira vez, direto e reto pro gavetão do nosso lado. Um gol capaz de abalar o ânimo de qualquer adversário.
Placar: 0 X 4
Trocamos de lugar antes de por a quinta bola em jogo, meu amigo assumiu a defesa e eu fiquei encarregado de comandar o ataque. Coloquei a pelota no cachimbo e empurrei com um peteleco, ela se precipitou com fúria reproduzindo o meu sentimento, rolou veloz até bater na borda oposta e retrocedeu irada, atravessou o campo novamente, chocou-se contra a lateral do meu lado e só então, já amortecida, rolou para o meio de campo, mas foi parar nos pés de algum jogador que não recordo se do nosso time, o Santos, ou do adversário, o Palmeiras; lembro-me somente que a sequência do jogo foi um bate e rebate intenso que aqueceu o nosso sangue. Deu para notar que o sujeito mudava a sua postura de acordo com o percurso e a localização da redonda. Quando ela estava no seu campo de defesa ele ficava de lado pra mesa olhando de frente para o nosso gol, o do Santos; se necessário usar o jogador de ataque, ele rapidamente esticava o braço sem mudar de posição. Noutras vezes ele se mantinha de frente pra mesa e fazia as mudanças de dois em dois; se a bola estivesse no seu campo de defesa, segurava os dois manetes de defesa, se no ataque, dava um passo para o lado e segurava os dois pegadores ao mesmo tempo, ataque e meio de campo, dava gosto de ver. Finalmente o sujeito parou a redonda sob os pés do seu centroavante na nossa intermediária, ameaçava puxando e empurrando o boneco de um lado para o outro fazendo a pelota rolar junto. Atento e bem compenetrado o meu amigo manteve dois jogadores, um zagueiro e o goleiro posicionados na frente para bloquear o chute. O palmeirense avançou com a bola para o lado até o limite possível do centroavante e puxou, isso forçou o Danilo trocar um zagueiro pelo outro na mesma função, mas antes de a redonda chegar ao limite oposto do seu jogador, nosso adversário chutou, justo quando a nossa defesa repunha o primeiro zagueiro de volta na marcação. Não deu tempo. Gol.
Placar: 0 X 5
Com a bola da sequência fizemos o nosso gol de honra. Nada criamos de especial, apenas jogamos. A finalização saiu de algum chute eventual. Ou talvez o sujeito tenha se distraído, mas não garanto.
Placar: 1 X 5
Quem aproveitou a última bola também foi o nosso adversário. Resultado:
Placar: 1 X 6
Vergonhoso.
Esse foi um dia especial por vários motivos, primeiro pela mesa de jogo oficial que conhecemos; segundo, por ter tido a oportunidade de usar o móvel para brincar; terceiro, pelo adversário, um desconhecido viciado que jogou às nossas custas; quarto, por seu talento, seus chutes mais pareciam tiros de canhão, de verdade. Aquela partida valeu como aula prática, conhecemos muitos lances inéditos vendo o sujeito jogar, tê-lo como adversário foi marcante, fiquei seu fã. Além das fortes pancadas na bola, mais duas de suas habilidades me impressionaram, uma foi a facilidade de usar o goleiro para chutar e a outra foi rebater um chute; esta última, principalmente, deixa qualquer adversário desconcertado, fui testemunha. A derrota acachapante mexeu com nossos brios sim, mas foi por um momento passageiro que deixou a valiosa marca do aprendizado. No dia seguinte, porém, meu desejo era exercitar o quanto antes tudo que aprendi justo contra meus habituais fregueses e ir à forra, feito vindita.