CRUZ E SOUSA

100 ANOS DA MORTE DE CRUZ E SOUSA, O ASSINALADO

Nelson Marzullo Tangerini

No dia 19 de março de 1898, morria, em Sítio, atual cidade de Antônio Carlos, Minas Gerais, o poeta simbolista João da Cruz e Sousa, negro sem mesclas, filho dos escravizados alforriados Guilherme, pedreiro, e Carolina Eva da Conceição, do Marechal-de-campo Guilherme Xavier de Sousa e de sua mulher, D. Clarinda Fagundes Xavier de Sousa, com quem aprendeu as primeiras letras, entre 1865 e 1866.

Por causa da Estação Ferroviária de Sítio, a localidade passaria a chamar-se Vila Sítio. Com a sua emancipação de Barbacena, em 1948, o ex distrito passaria a chamar-se Antônio Carlos, em homenagem ao ex presidente de Minas Gerais.

Já minado pela tuberculose, o poeta aceita sugestão de amigos e procura o referido distrito, na Serra da Mantiqueira, a 1040m de altitude e de ar puríssimo,.

Antes, porém, deixa seu espólio literário, os “Últimos Sonetos”, com o amigo Nestor Vítor. Carrega consigo a dor de ter perdido três filhos, todos vítimas da tuberculose, e sua esposa Gavita, verdadeira “Madona da Tristeza”, já louca e grávida do 4º filho, João.

Segundo o sr. João de Farias Pereira, dono do Cartório de Antônio Carlos, Cruz e Sousa hospedou-se na Pensão Amadeu Lemuchi, hoje propriedade de D. Elza, onde teria delirado por 3 dias.

Outra versão tem, porém, o jornalista e poeta Oscar Rosas, amigo de Cruz e Sousa: o poeta teria sido expulso da referida pensão por estar muito mal, pondo muito sangue pelo nariz e pela boca e, enfim, morrido na Estação Ferroviária de Sítio, posteriormente destruída após um incêndio devastador.

O final da história todos sabem: seu corpo foi mandado de volta para o Rio de Janeiro, num caixão feito de madeira rude – tábuas de caixote de bacalhau -, e viajou num trem de carga, entre bois e muares. Seis dias depois, seu corpo chegaria à Capital Federal, seguindo para o Cemitério São Francisco Xavier, no Caju, onde aconteceu o sepultamento.

Rosas, após a morte do amigo, mandou erigir um busto do “Dante negro” – assim o chamavam -, que foi posto na Praça Benjamim Constant, em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, Santa Catarina, onde o poeta nasceu, a 24 de novembro de 1861.

Roger Bastide, sociólogo francês, colocou-o entre os três maiores nomes do Simbolismo, ao lado de Stefan George e Mallarmé.

Aqui, porém, o poeta continua desconhecido, pouco estudado e não popularizado. Ainda assim, a ECT, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, põe fim a tudo isto: emitiu , em março, um selo comemorativo aos 100 anos de sua morte. Nada mais justo.

O escritor, jornalista, memorialista e historiador Uelinton Farias Alves (*), atualmente a maior autoridade no assunto, na vida e na obra do poeta, lança, até o final do ano, o livro “O assinalado – Cruz e Sousa – uma trajetória de vida”, a ser editado pela Nova Fronteira. No romance, Farias Alves tenta trazer a público o drama vivido por Cruz e Sousa e sua família, o racismo de que foi vítima e saída às pressas de Florianópolis: fora ameaçado de morte pelo temido Coronel Moreira César, o todo poderoso de região. O poeta teria se recusado a aceitar uma ordem sua, de apagar um lampião de rua. Moreira César chamou-o de “nego”, e Cruz e Sousa respondeu-lhe, dizendo que não o apagaria, por não ser seu escravo ou criado. O amigo Oscar Rosas enviou ao poeta, avisando-o que era melhor ir embora da capital catarinense, pois sua vida corria risco de ser abreviada.

O livro conta, também, a trajetória abolicionista do poeta, derrubando a tese de o poeta queria ser branco e não teria medido esforços para acabar com a escravidão.

A sua casa, à Rua Cruz e Sousa, nº 172, no Encantado, subúrbio do Rio de Janeiro, foi demolida em 1986. Junto a um grupo de admiradores do poeta, tentamos, inutilmente, impedir sua demolição. Na época, conversamos Antônio Pedro, Secretário de Cultura de Saturnino Braga. Também enviamos cartas aos jornais de todo o Brasil e ao Presidente José Sarney. Em vão. A casa foi demolida e eu ainda tive de ouvir piadinhas da proprietária. Certa vez, inclusive, revoltada com o grupo que peregrinava até aquela moradia, ouvi a referida senhora dizer: “Vocês fazem o maior estardalhaço à porta desta casa por causa de um crioulo que morou aqui”?

Queríamos transformar aquela casa em museu, centro cultural ou biblioteca pública, mas o Encantado não pode entrar na mídia. É um distante bairro do subúrbio.

Por pouco, Cruz e Sousa seria quase vizinho de outro negro discriminado e humilhado: Lima Barreto, morador de Todos os Santos, outro bairro suburbano, não muito longe do Encantado. (**)

Nota:

(*) Uelinton Farias Alves, que hoje assina suas obras literárias e resenhas como Tom Farias publicou o livro “Cruz e Sousa, Dante negro do Brasil”, pela Editora Pallas.

(**) A crônica acima foi publicada reescrita pelo autor, que eliminou erros de pesquisa e termos inadequados. Foi publicada na 1ª. página do jornal piracicabano Linguagem Viva, Ano IX – Nº 103, março de 1998. Eram seus editores: Adriano Nogueira (já falecido) e Rosani Abou Adal.

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 20/10/2021
Reeditado em 20/10/2021
Código do texto: T7367697
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