O que ela quer da gente?
Não sei dizer exatamente quando, mas entre agosto e setembro o Caos entrou pela porta da minha sala e confortavelmente se sentou em uma das cadeiras que ficam em frente ao sofá. Ali, todos os dias, nos encaravamos e razoavelmente ele sorria, sabendo que nada nunca mais seria como um dia eu conheci.
Escolhi falar Caos, assim, com inicial maiúscula, pois era como os gregos tratavam-o no passado. Depois dos primeiros gregos, os que viviam em Micenas, vieram os gregos que Hollywood ama, os que viviam nas Cidades-Estado e conseguiram romper a barreira do tempo para transpor suas visões éticas, filosóficas e políticas. O que poucos sabem é que esses gregos jamais souberam com precisão o que ocorreu em Micenas. Provavelmente os primeiros gregos foram absorvidos pelos dórios e jônios durante anos de invasões. Mas os gregos que vieram após não sabiam disso, precisavam encontrar uma solução para a lacuna existente em sua origem, para isso, criaram os mitos, as lendas, as divindades e toda a sorte de histórias que hoje conhecemos como Mitologia Grega.
O Caos era, para os gregos, o primeiro deus. Antes de Zeus, Cronos, Gaia e os demais Titãs, lá estava o Caos, o pai de tudo e de todos, um ser infinito, sem forma, vazio e completo; simples e complexo. Foi através dos movimentos do Caos que o mundo nasceu, foi através dele que vieram os deuses primordiais, os titãs e toda a velha história que já vimos em tantos filmes, séries, documentários e afins.
É isso que o Caos faz, ele cria. Nos últimos meses o vi criar situações inesperadas, inimagináveis, confusas, complexas, simples, fáceis, de tirar o sono e de causar sono. O Caos foi implacável, fez da minha casa um belo laboratório de experimentos. Tudo que eu acreditava saber sobre segurança, certeza e controle foi embora. Ficou o vazio da incerteza, do questionamento, do que era efêmero. Desse momento de incerteza em diante o Caos se movimentou, e então algo novo surgiu. Não era ruim, era bom. Depois outro movimento e algo igualmente novo surgiu. Ainda era bom. Depois outro movimento, outro novo, mas eu não sabia dizer se era bom ou ruim, mas era novo, era diferente, era pra se descobrir, e desde então tem sido isso. O Caos que se instalou na sala decidiu passear pela casa. Andou pelos quartos, foi ao banheiro, observou a cozinha, mas foi ao lado da minha mãe que ele decidiu ficar.
Dia e noite ele ficou com ela. Não temi. O Caos não era um amigo, mas estava longe de ser um inimigo. Se mal ele não queria, então não havia nada que eu pudesse fazer para impedir aquela relação. O Caos precisava estar ali e ela precisava dele. Eu vi de perto tudo que aconteceu, vi as lágrimas, a dor e o desespero. Pensei em me consumir pela dor do encontro deles, mas o Caos não deixou, a dor não era minha, era dele para ela. Era um presente difícil de se entender às 10h da manhã de um verão, mas fácil de decifrar às 23h de um inverno. Ele ficou, até que no final de agosto ele anunciou sua data de partida: início de outubro.
Na primeira semana de Outubro ele se portava como uma estrela antes de explodir. Estava fervendo, elevou os eventos à quinta potência. Incendiou a casa, nos alarmou. Numa tarde de segunda-feira chuvosa, enquanto um técnico se segurava em um poste para religar os fios em curto-circuito que minutos antes haviam apagado toda a energia da minha casa, atendi a ligação de uma grande amiga. Sem internet, sem redes sociais e com um sinal de 4g oscilante, pois a cidade foi atingida por uma chuva de raios, minha primeira fala só pôde ser uma: Amiga, eu estou vivo!
Eu estava vivo. Eu estava vivo para ver o último ato do Caos. Às 08:08 de um sábado eu beijei o rosto da minha mãe, sentada em uma cadeira de rodas, enquanto ela seguia tranquila para a cirurgia que iria redefinir toda a sua vida. A disse que depois daquilo uma nova vida viria. O Caos estava ao meu lado quando ela entrou na área restrita aos profissionais do centro cirúrgico. Às 11h ela voltou para o quarto, sedada; a cirurgia foi um sucesso, mas para a minha surpresa, o Caos não veio junto aos maqueiros, também não veio junto com a equipe médica, ou com os técnicos e enfermeiros. Ele não voltou com ela, de carro, após a alta.
Ele se foi. Às 08:08, enquanto eu olhava fixado para a porta da ala cirúrgica, não vi o Caos saindo pelo outro lado do corredor. Não sei se gostaria de uma despedida. Não sei se haveria espaço para um abraço.
Passei os últimos dias imerso no caos do pós-operatório. Esse, minúsculo mesmo, já não é mais obra daquele Caos, esse é apenas consequencial.
Agora, enquanto escrevo, minha mãe repousando no quarto disse o seguinte: “Deus me deu uma nova vida e eu vou aproveitar ela”.
Eu não acredito em nada, mas aqui, vou ter um lapso e esquecer que sou cético, vou sim dizer que Deus esteve aqui em casa. Seu nome era Caos. Ele bagunçou a minha vida e ressignificou tudo. O Caos me deu uma nova vida e eu vou aproveitar ela.
Acho que ele veio a mando da Vida, me fez sonhar alto, me fez ver o mundo pequeno lá do alto e me fez pousar em segurança numa terra completamente diferente do que eu esperava encontrar. O que a Vida queria que o Caos me desse? Coragem.
O que ela quer da gente? Coragem!