Pecunia non olet
Na véspera, eu decidira sair antes de tomar café. Eu queria ver de perto a euforia dos pregões no hall da Bolsa de Valores, no centro, mas isso foi há muito tempo. Hoje tudo acontece virtualmente, isto é, quando as ações caem muito para além do esperado, quem paga o pato é a tela do computador, depois que o investidor, no conforto de sua casa, a desfaz em mil pedacinhos. Alcancei uma padaria numa travessa da XV de novembro antes que os primeiros borborigmos se manifestassem.
Visitar a Bolsa estava nos meus planos desde há algumas semanas, quando, movido por uma daquelas curiosidades aparentemente sem propósito, eu passei a estudar sobre o mercado de ações. Descobri que não era a dinâmica do mercado, com o seu humor esquizofrênico, o objeto do meu interesse. As pessoas me interessavam mais. Croissant de queijo com frango, cappuccino médio -- sem canela -- e, de sobremesa, uma trufa generosa. Paguei e saí.
Não é sensato julgar a realidade pelo que se vê a partir de um único recorte. Sob muitos aspectos, a Economia move o mundo. Estados nascem a partir dela, guerras são travadas sob seus conselhos, bens materiais são produzidos em grande escala e a comodidade na vida cotidiana torna-se um ídolo pagão objeto de entranhada devoção. No entanto, há muitos outros aspectos da realidade que operam diretamente sobre o indivíduo humano.
Na rua, a três ou quatro dezenas de passos do prédio da Bolsa de Valores de São Paulo, vejo uma horda de mendigos. Há muitos deles na região central da cidade. Abrigados sob os toldos dos prédios, sob as sombras das frondosas árvores centenárias, sob as grossas e encardidas cobertas, ou encolhidos junto às paredes dos prédios, os desvalidos padecem sob o peso esmagador da indiferença. Eu só os notei de saída da padaria, depois de tomar café.
Um deles, no entanto, atraiu a minha atenção de uma forma especial. Ele era diferente dos outros seus companheiros; na verdade, a julgar pelo seu comportamento, eu não diria que este mendigo em especial fosse companheiro dos demais. Não. Na multidão dos abandonados ele não buscava consolo na companhia dos outros de mesma condição. Ele era solitário. Estava sentado próximo à entrada do prédio da Bolsa, longe dos outros.
Como havia uma fila de tamanho considerável no hall do prédio para o cadastramento dos visitantes, tive tempo para observá-lo e tentar atender à necessidade natural de conceber uma história para todas as coisas. Dar nome às coisas, categorizá-las, como ensinara o velho Aristóteles, implica contar uma história, dar uma forma verbal para aquilo que acreditamos ser a verdade sobre tudo.
Que nome damos à situação na qual um estereótipo perfeito se materializa diante de nossos olhos? Déjà vu? O homem vestia uma calça de alfaiataria marrom, um sapato preto -- possivelmente de couro --, uma camisa azul-marinho e um terno cinza. Todas as peças estavam sujas, embotadas e havia rasgos aqui e acolá. Ele não usava meias. Os guias da visita às instalações da Bolsa trabalhavam com celeridade; a fila andava e carregava-me para cada vez mais perto do pobre necessitado. Antes de entrar encarei os seus enormes olhos castanhos.
Mentirei se eu disser que prestei atenção às palavras do guia. A história da formação da Bolsa de Valores de São Paulo, os feitos notáveis dos barões do café, a significação do Vale do Paraíba... a algazarra dos pregões, tudo fora sepultado sob uma atmosfera nublada na qual até os melhores conselhos sobre investimentos ganharam contornos imprecisos. Por fim, decidi fazer o que eu sentia ser o meu dever.
De volta à padaria nos entornos da rua XV de novembro, depois da visita à Bolsa, eu soube de tudo. Ele fora um homem rico, de família renomada, estudou em excelentes escolas; seus pais o enviaram para a Universidade do Porto, em Portugal, de onde regressou feito Doutor. O homem vivera no luxo, tinha para si as mais soberbas mordomias. Casara-se, tivera dois filhos que, depois de vê-lo cair em desgraça, decidiram ficar com a mãe, no estrangeiro.
Sobre as causas do seu atual estado, o mendigo contou-me pouco; em verdade, nada. Eu li em seus olhos o que estava escrito nas entrelinhas do seu discurso. Ninguém sabe ao certo o que leva as pessoas a decisões estúpidas, incoerentes, descabidas. Talvez uma enorme ausência de senso de proporção, uma inconsciência, uma falta de trato com a realidade o tenham lesado para sempre. Por fim, somente depois que o gentleman improvável agradeceu pelo café e saiu, atinei para a descoberta que eu fizera: às vezes, o urso do homem é o próprio homem.