NA FILA DA VACINAÇÃO

Manhã ensolarada, tipicamente de outubro. Ótimo dia para vacinar, ele ironiza enviando a mensagem pelo WhatsApp. Em instantes, chega-lhe a figurinha do jacaré rindo. Ironia por ironia, sou mais a minha ele pensa, desligando o celular e colocando-o no bolso. Desce a ladeira, rumo ao centro de vacinação.

A fila, ao contrário de quando tomou a primeira dose, está enorme. Ele suspira: da outra vez só tinha um sujeitinho atarracado pra vacinar. Só espero que eu não precise tirar foto de ninguém com a agulha enfiada no braço, ele pensa tomando seu lugar na fila. Da outra vez, o sujeitinho lhe pediu para fotografá-lo com um cartaz. Jamais se esquecerá: escrito com caneta vermelha, em caligrafia horrenda, #VIVAOSUS e #VACINASIM. As pessoas são terríveis, sorri, sob a máscara manchada de água sanitária.

Um homem de meia idade lhe cutuca o ombro: tem fila diferente conforme a idade? Ele olha em torno, como quem diz: só estou vendo uma fila e, cortesmente, responde que não, é fila única. À sua frente duas mulheres reclamam do sol e do calor. Certamente reclamaram das chuvas e do frio que castigaram a cidade na semana passada, ele pensa, olhando a rua. As pessoas nunca estão satisfeitas, é incrível, conclui. Da esquina, um homem sem máscara e encurvado como matusalém encara a fila. Fala sozinho e sorri, sem tirar os olhos do povo. Está debochando de nós, ele pensa, desviando o olhar.

Uma mulher alta e magricela passa pela calçada, para, caça com os olhos algum conhecido na fila. Acena para uma baixinha de camisa amarela, se aproxima da mureta e pergunta: é fila pra quê. Ele pensa, ô curiosidade que essa gente tem... A baixinha responde que é para a segunda dose da Astrazeneca. A magricela apoia-se na mureta, comenta que ainda não tomou a sua “porque diz a minha vizinha que acabou”. Ele olha em volta, pensando: o que eu e toda essa gente estamos fazendo aqui. A magricela repete e diz com a certeza dos sábios que ainda não tem segunda dose na cidade. A loira corpulenta, à frente da baixinha, interrompe o colóquio: chegaram mais vacinas, sim, a prefeitura divulgou no Facebook. A gente não tá entendendo mais nada, resmunga a magricela, e atravessa a rua. O velho continua sorrindo, olhos fixos na fila que só aumenta. Deve ser demente, ele pensa, dando mais um passo à frente.

Na loja de eletrodomésticos, a voz conhecida divulga as promoções da semana. A loira puxa conversa com um rapaz, diz que não acredita na eficácia das vacinas e que “quem tiver que pegar, pega; quem tiver que morrer, morre”. O rapaz concorda. Quanta sapiência, ele tem vontade de dizer. Mas não diz, prefere resmungar baixinho, recriminando-se por ter esquecido os fones de ouvido. A baixinha da camisa amarela entra na conversa, diz que na escola onde trabalha está muito difícil fazer os meninos maiores usarem máscara e “que até já comentei com eles que eles já devem ter pegado o vírus e se imunizaram sem saber.”

Um menino aponta o sujeito de camiseta cinza: pai, ele tá furando a fila! O povo começa a cochichar. O sujeito olha para trás e comenta “só vou perguntar uma coisinha pra moça ali.” Não convence a loira e a baixinha. Ele, indiferente, enxuga o suor que escorre na testa, dá outro passo. O carro de som passa anunciando mais um óbito. É o turco da loja de tecidos, comenta o homem de meia idade postado atrás dele. Como ninguém responde, ele se volta. Morreu de infarto, o homem arremata. Não o conheci, ele diz, virando-se para frente e dando dois passos. Finalmente a fila começou a agilizar, ele pensa, mirando os pombos no telhado. O céu está agradavelmente azul, como deveriam ser todos os dias na primavera, conclui, dando mais um passo. O sujeito apontado como furão sai, cabeça baixa.

Uma dona com uma criança grande demais para estar no colo vai ao balcão. As pessoas lá na frente da fila riem quando ela volta, puxando a menina pela mão. Tentou furar a fila, ele conclui. Um grupo na porta da farmácia olha o povo, parece admirado. Gente besta, besta e desocupada; até parece que nunca se vacinou, ele pensa. E, antes de dar mais um passo, conclui: talvez não tenha se vacinado mesmo, devem ser negacionistas. O carro volta, repetindo o nome do falecido. Devia ser proibido anunciar a morte, ele sentencia. As pessoas à sua frente encaram-no. Ele dá conta, então, que mais uma vez falou sozinho e, o que é pior, audivelmente. As pessoas, como uma tropa sincronizada, marcham dois passos. Ele as segue, de cabeça baixa.

Raphael Cerqueira Silva
Enviado por Raphael Cerqueira Silva em 14/10/2021
Código do texto: T7363444
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.