Criança S/A

Nasceu em uma terça-feira, num dia 12 de outubro de ano comercial, às 4h30, em ponto. Nesse momento tão especial que foi o seu nascimento, não teve tempo de saudar seus pais, o senhor e a senhora Exploração S/A, nem os auditores da Receita Federal do Brasil. Foi levada urgentemente ao Cartório de Registro de Pessoa Jurídica mais próximo, onde foi registrada sob o CNPJ 33.123.033/0001-00, conhecendo finalmente sua razão social e a herança que herdaria de seus pais, calculada em dólares americanos: US$ 1.000.000.000.000.000.000.000,01.

Nesse mesmo instante, foi revelado a essa criança jurídica que ela não era nem nunca poderia ser criança tal qual consta no Estatuto da Criança e do Adolescente; que não poderia brincar para viver, tampouco viver para brincar; que teria, desde o seu registro e nos termos da lei, um CNPJ e uma razão social a zelar; que responderia judicial e moralmente por suas atitudes; que teria responsabilidades com seus pais e, principalmente, acionistas.

Essa criança ficou naturalmente muito triste, abriu um enorme berreiro, que inclusive foi ouvido em toda a extensão da Avenida Paulista, residência oficial da grande parte das crianças jurídicas nacionais.

Essa criança S/A tem apenas seis anos. Pensa ser cedo para tornar-se pessoa jurídica, responder nos termos da lei, trabalhar em tempo integral. Quer dormir além das horas regulamentares, brincar, dizer e fazer bobagens sem medo de represálias jurídicas ou sociais; tratar os pais pelo nome extraoficial, e não senhor e senhora Exploração S/A.

Acha que deveria ser crime envelhecer antes dos dezoito. Acha, a essa idade, aos seis anos apenas, injusto ser responsabilizada nos termos da lei, acordar antes das 10h, declarar Imposto de Renda; ter reunião de negócios; levar os pais ao médico; lavar os pratos antes ou após as refeições; arengar no trânsito, arengar no trabalho, arengar nos bares das esquinas; pagar aluguel, pagar pedágio, pagar o gás de cozinha; calcular a inflação; apreender inglês instrumental, apreender português instrumental; instrumentar, instrumentalizar-se; e finalmente, mas não menos perigoso: sofrer um enfarte antes dos vintes anos.

Pretende recusar a razão social e a herança em dólares. Mas é informada da multa que terá que pagar, e como já nasceu devendo ao mercado de commodities, desiste. Todo dia, porém, durante suas poucas horas de sono, gosta de sonhar que tem apenas cinco anos, e não seis, que sabe subir em árvores, passarinhar, construir castelos de areia no asfalto, que não acordará antes das 10h, que não lavará pratos hoje, que Imposto de Renda é roubo, que não terá reunião de negócios nem sofrerá enfarte antes dos vinte anos, mas que se chama Pedro da Silva, vivido e domiciliado na rua da Compaixão.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 12/10/2021
Reeditado em 15/10/2021
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