Viciado em Mimeógrafo

Short, camiseta, bonezinho, meia, tênis Conga, lancheira e uma sacola azul. Assim, eu era despachado para o pré-primário. Tem mais: garrafinha com suco de laranja e um pão com mortadela ou um pacotinho de Lanche Mirabel. Pronto, agora sim eu pareço uma criança dos anos 80.

Não diria que pão com mortadela seja saudável, mas, perto do que seria o primeiro vício (no meu caso, único) de qualquer pirralho oitentista, o inocente sanduíche escondia o incomum entusiasmo estudantil.

A ameaça tóxica e totalmente incorreta era o inesquecível mimeógrafo. O aparelho, pai da fotocopiadora e avô da impressora, multiplicava os desenhos para colorir. Até aí, beleza. Acontece que a geringonça era abastecida com álcool. O cheiro do líquido impregnava em toda a sala de aula, inclusive no pátio, inclusive na cozinha, inclusive no banheiro, inclusive no escritório, inclusive na rua...

A distribuição da folha era uma inocente permissividade, um experimento antropológico, a própria implementação da engenharia social ou os reflexos dos loucos anos 60. Talvez, esse fosse um ato deliberado de minha professora — quem, todos os alunos, desavisadamente chamavam de “tia”.

Aquele cheiro de álcool, que tomava conta do ambiente escolar, devia viciar também as professoras, a diretora, o pessoal da administração, as tias da cozinha, as moças da limpeza e quem passasse em frente ao prédio escolar. Resultado: primeiro vinha a euforia (como em Woodstock); depois, um sono incontrolável. O saudoso mimeógrafo disseminava um aspecto de envenenamento coletivo (como em alguma seita de algum guru doidão).

Sempre que a traquitana era posta para rodar, o clima na escolinha, magicamente, melhorava muito. Tudo ficava mais colorido (além dos desenhos) e todos, de repente, ficavam mais felizes. Acho até que a professorinha, sabendo dos efeitos alucinógenos dos vapores etílicos no cérebro, num acordo tácito, fazia uma concessão ao prazer proibido. Agora entendo a profusão de folhas para pintar, bem como a nossa “criatividade” psicodélica para colorir alguns objetos em cores absurdas. Também chamava a atenção e agora compreendo a volúpia com que a “tia” rodava mais, mais, mais e mais aquele encharcado mimeógrafo.

Ainda hoje, creio que muitas crianças que choram quando vão para o primeiro ano, não é pelo trauma da separação da mãe, mas de saudades do cheiro do mimeógrafo.

RRRafael
Enviado por RRRafael em 12/10/2021
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