A face sombria de um domingo
Descrever o que me afeta e se traduz em sentimentos, nunca consegui.
São muitos fatores envolvidos. Histórias a serem recuperadas de uma memória que pode e tem conseguido me enganar, sorrateiramente.
Quem sabe eu pudesse desenhar o que seria a imagem perfeita desses sentimentos.
Mas hoje eu fiz melhor.
Escalei as paredes, passei pela antiga casa da dona aranha, que ninguém se atreve a eliminar e entre os caibros e o telhado, fiquei ali com uma metade. A outra metade estava lá embaixo, peça no tabuleiro.
Passei mais uma vez pelo desconforto que vai se transformando em algo que sufoca. Respiração só superficial e a presença querendo estar ausente.
Outra presença se aproxima, mantendo distância. É como se a sua língua emitisse labaredas que lançam chamas. Labaredas lancinantes, no âmago da sua história pessoal, mas as mesmas labaredas, com seu calor, abraçam, envolvem e seduzem a outros.
Observo lá de cima e não consigo mais identificar de onde saem as chamas das línguas. Parece que são línguas que por muito tempo foram orquestradas por um mesmo maestro.
Injetando álcool, a língua se reproduz, em progressão geométrica e com suas lanças, perde o foco.
Lança fogo, enlaça com o fogo e se dissipa numa fumaça em que é preciso prender a respiração. Algumas feras ficam exaustas, enquanto outras tiram proveito.
A exaustão faz com que se retirem e deixem o ambiente contaminado: pelo enlace do fogo, pela lança do mesmo fogo.
Amor e dor.
Ternura e raiva.
Doçura e amargor.
Rebeldia e paz.
Submissão e liberdade.
Medo e coragem
A dualidade da intenção das labaredas de fogo no coração e na história de cada um que escolheu ser afetado.
O gelo será afetado. A água será afetada, o ar será afetado. A madeira será afetada. Até o metal será afetado. É imenso o poder do fogo.
Mas o gato pode comer a língua e a água pode apagar o fogo.
E a mim, que estou metade lá embaixo... Que material me protege dos demônios, dos fantasmas, das sombras e da minha própria língua mordaz quando me sinto possuída até as entranhas:
De um sentimento de não pertencer.
De uma solidão que se fortalece com seus fantasmas.
De ver o tempo passar e reconhecer que apenas sou mais do que sou, para o bem e para o mal.
De reconhecer que me falta um raio de sol nesta vida sombria que me permita exorcizar o que está reprimido e então, só assim, descer do caibro onde minha metade assistiu á luta de línguas de serpentes entre laços de amores transcendentes, inexplicáveis, inabaláveis e me integrar à minha outra metade e ser quem sou.
Mas, quem eu sou?