A FESTA DOS SANTOS PRETOS

Apesar de ser bem cedo, me levanto empolgado. Não é um dia qualquer. Escuto de longe as batidas dos tambores e o estrondo dos rojões indicando que a “alvorada” já está iniciando. Meu coração se agita. A grande festa da Congada está chegando. Uberlândia, sonolenta, teima em continuar seu sono, afinal, hoje é domingo! Mas, em muitos pontos da cidade, catadoras(es) de papel, guardadores de carros, garis, motoristas de ônibus, empregadas domésticas, gente simples da cidade viverão transformações: serão reis e rainhas pela fé.

Puxando na memória, lembro das histórias que já faz muito tempo que tudo isso começou. Nossos antepassados se reuniam e entoavam preces – clamando por liberdade e dignidade - à santa de devoção: Nossa Senhora do Rosário. Embalada por cantigas e vozes fatigadas, sempre imagino que a oração chegava mais depressa aos céus. Afinal, a boa santa devia conhecer bem o sofrimento do seu povo.

Ainda pela manhã, os ternos desfilam pelo centro da cidade: Marinheiros, Congos, Catupés, Marujos e Moçambiques, uma procissão que encanta os olhos dos homens e mulheres, mas principalmente, os de Deus. Crianças, adultos e idosos, passado e presente se entrelaçam, beleza da tradição. As vozes, cores e clamores dos ternos se misturam e louvam com extrema beleza a Mãe do Rosário e São “Ditim”.

No final da Avenida Floriano Peixoto, quase no bairro Fundinho, a pequenina igrejinha humildemente observa a bonita celebração. As fitas pulam dos mastros e se entrelaçam numa mistura de cores, sons, fé e devoção. Os tambores gritam alto para que Nossa Senhora do Rosário e os meus santos pretos também escutem e comecem a festejar. Vejo uma bela procissão saindo do altar: Benedito, Efigênia, Bakhita, Martinho e outros mais, meus santos escutaram minha louvação. As lágrimas teimam em cair, sinal de que o coração às vezes é duro, quase feito de pedra, mas nestas horas :‘Fuzuê, fuzuê, fuzuê, fuzuá / Quando chega a festa santa / Faz meu coração chorá!”.

Mas estranho, de repente escuto o barulho do interfone. Percebo que ainda estou na cama. Infelizmente foi só um sonho! Por conta da pandemia a festa santa não aconteceu, mas chegado o segundo domingo de outubro é impossível não lembrar.

Aproveito a recordação, rezo uma Ave Maria, pedindo a Boa Mãe que interceda por nós, principalmente pelo povo negro, tão massacrado pelas múltiplas forma de discriminação. No coração fica a esperança de que no próximo ano, estarei festejando junto com o povo a festa do Rosário.