Brasília quando durmo

Mas... Mas isto é Brasília! Sim, é Brasília, não há a menor dúvida quanto a isso. E esta aqui é a famigerada W3 Sul, estou reconhecendo os prédios decadentes, o trânsito pesado, tomado por ônibus caindo aos pedaços. Fiz este caminho todos os dias durante seis anos, como é que eu não iria reconhecer a W3 Sul? E, contudo, o que é que estou fazendo aqui agora? Pois se eu já não vivo em Brasília, já voltei há vários anos para o sul e para o frio! Ou será que não? Será que eu ainda vivo em Brasília? Ou eu voltei para cá e não me lembro mais? Bem, bem, mas, se eu ainda vivo na capital do país, certamente eu ainda tenho emprego – o único emprego que tive na cidade.

Dirijo-me até o prédio do meu trabalho, perto da Torre de TV. Ah, não há dúvida, está tudo como antes, como sempre esteve. Os porteiros são os mesmos, ainda tenho que passar o cartão para liberar a catraca. Se tenho o cartão, é certo que ainda trabalho ali. Ou será que não? Sou assaltado pela ideia de que já me dispensaram, de que me agradeceram por tudo o que fiz, mas, realmente, não precisam mais de mim. E, nesse caso, por que a insistência de ir trabalhar, por que essa recusa em aceitar a minha demissão? Por acaso eu penso que sou capaz de convencê-los a mudar de ideia? Talvez se eu aparecer por lá normalmente, como fiz durante seis anos, os donos da empresa aceitem que tudo deve continuar como antes.

Conheço esses elevadores, aquele da ponta faz muito barulho, mais de uma vez achei que ele pudesse estragar comigo lá dentro, mas nunca aconteceu. Aperto o 14º andar. Enfim, o mesmo corredor de sempre! Como nada mudou! É um dia normal de trabalho e eu caminho para a minha sala. Está vazia, o que não me espanta, pois durante a maior parte do tempo só eu trabalhava nela. O computador é o de sempre. Sento-me e me preparo para trabalhar, ainda com a incômoda impressão de que estou ali sem precisar, de que na verdade não trabalho mais ali, mas sou teimoso, sou muito teimoso, vou continuar indo trabalhar todos os dias em que eu estiver nessa cidade.

O dono da empresa passa pela minha porta, diz o seu tradicional “boa tarde”, mas sem parar, só diz e vai adiante, rumo à sua própria sala. Por mais ligeiro que ele tenha passado, é certo que me viu ali. Agora ele sabe que eu apareci para trabalhar, mesmo sem ter necessidade, eu sou desses, eu faço coisas que não precisam ser feitas. Ah, ele vai aparecer de novo, sem dúvida vai aparecer e falar “escuta, não é mais para você vir, nós já acertamos a sua saída”, e a isso eu nada poderei contrapor, mas esse meu receio se mostra infundado, porque ele não aparece mais.

Concluo com isso que ele permite que eu fique, de certo não vê mal nenhum em que uma pessoa que já foi dispensada continue trabalhando para ele, sobretudo porque não vai ganhar nada por isso, está implícito que eu não vou ganhar nada, dei-me conta realmente disso, o meu trabalho é sem salário algum, mas, coisa estranha, a verdade não é suficiente para me afastar desse emprego.

Aparecem outros funcionários, até mesmo gente que já havia deixado de trabalhar ali há muito tempo, ah, todos estão de volta, então deve ser isso, a gente, não sei como, voltou no tempo, voltou ao que era antes, voltou a um estágio, se não ideal, ao menos melhor para nós, e por isso ninguém ali estranha a minha presença, estamos todos no mesmo barco.

Entretanto, tenho consciência de que não ficarei ali para sempre, que devo partir, que não se pode fazer trabalhos inúteis por muito tempo, que não é em Brasília o meu lugar. E, no entanto, não estou triste e nem feliz, só quero aproveitar o meu tempo ali, quero aproveitar mais uma vez esse dia de trabalho tão normal.

Quando saio do trabalho, dou-me conta de que estou vivendo o meu último dia na cidade. Preciso então fazer uma infinidade de coisas pela última vez, sabendo que será a última vez, como uma forma de despedida, e agora estou feliz, porque tenho tempo para isso, porque aquele dia vai durar uma eternidade e eu não preciso ter pressa, posso ver tudo com calma, aproveitar a cidade sabendo muito bem o que estou fazendo: deixando tudo gravado na memória, para que nada se perca e o passado seja preservado – nem que seja sob a forma de sonho.

milkau
Enviado por milkau em 09/10/2021
Reeditado em 09/10/2021
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