O monotemático e outras drogas

Arquivou assuntos monetários internacionais, principalmente os relativos à alta inflação, à violenta crise no Oriente Médio, ao estridente Efeito Estufa, ao mortífero Desmatamento da Amazônia; abandonou notícias policiais, passou à categoria dos leitores de horóscopo; trocou a estante de livros por uma geladeira frost free, jogou fora os livros e encheu-a com cervejas e outras bebidas mais alcoólicas. Hoje pode dizer que se metamorfoseou no tipo de cara que sempre detestou, no sujeito monotemático.

Sua vizinha, moça delicada, multitemática e loira, cuja amizade ele finge renegar, tem lhe perguntado com irritante frequência se a transformação que nosso monotemático apresenta é efeito de praga que lhe rogaram ou apenas ironia mesmo. Ele cala-se. Deixou de ser autobiográfico, apesar de até pouco tempo reconhecer a inclinação. Era efetiva e tristemente um cara autobiográfico que desde cedo esforçou-se para estabelecer contatos internos; que não raro expôs a vida na esquina, como o faz com seu pescado um vendedor de peixe ao apresentar o produto à clientela.

Hoje ele é monotemático, meio surdo e mais ou menos feliz. A vizinha parece ignorar esses detalhes. Tenta puxar conversa, informar sobre os acontecimentos miúdos que circunscrevem a dilapidada existência do monotemático. Fala sobre o caso do alagoano de 23 anos que morreu em SP após ingerir um litro de vodka durante aposta com amigos; sobre a morte do motorista por aplicativo espancado por ambulantes no centro de Maceió; sobre o novo aumento no preço da gasolina; sobre a opressão às mulheres no Afeganistão; sobre a opressão às mulheres na América Latina; e, diante de silenciosos bocejos do monotemático, conclui o noticiário discorrendo acerca do feminismo no Brasil.

Ela parece não entender que nosso monotemático quer apenas continuar sendo monotemático, meio surdo e mais ou menos feliz; que atualmente lhe desagradam os noticiários, os pequeninhos ou grandes acontecimentos do cotidiano, a ditadura no Afeganistão ou em qualquer outra parte do mundo mundo vasto mundo; que quer continuar escovando os dentes após as refeições sem a necessidade de olhar-se ao espelho e perguntar-se: "A quanto será que anda o dólar? E o preço do barril de petróleo?"; que afinal e finalmente agora, pois antes tarde do que nunca, como dizem os multitemáticos, descobriu que, como diz poeta ph.D em assuntos metafísicos, mais vasto que o mundo mundo vasto mundo é o seu coração.

Hoje esse monotemático pode dizer que seu bem-estar físico e mental independem de variação cambial, da diminuição ou aumento da violência no mundo ou no centro de Maceió. Há quem diga que nosso monotemático está louco, há quem diga que ele é louco, assim como há quem diga que a salvação está em Lucas 1:45. Enquanto não se decidem, nosso monotemático abastece a geladeira frost free com livros e outras drogas.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 09/10/2021
Reeditado em 12/10/2021
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