Pra me queixar de mim
“Queixo-me às rosas
Mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai”
As Rosas Não Falam
Cartola (1908 – 1980)
Eu até falei com as flores. Estavam lindas, cheirosas e iluminadas pelo sol do nascer do dia!
Elas, sibites pela comemoração de seu dia, nem sequer olharam pra mim, tripudiaram sim sinhô — nem de soslaio se viraram pra me verem passar, meu amigo!
Cabisbaixo, fui — como quem não quer nada e querendo — pedir abrigo às árvores frondosas e sorridentes que estavam e celebrando o dia do seu plantio.
— Bom dia, senhoras donas árvores que me sombreiam!
Silêncio absoluto, risos desprezíveis, balançar de galhos e folhas — foi a resposta que mereci.
— Eu só queria lhes perguntar s’eu posso me abrigar nestas belas sombras que as senhoras proporcionam a todos viventes e durante o ano inteiro, quer chova quer faça sol. Posso?
A mudez continuou, a ponto de se ouvir o ruído dos passos cadenciados das iguanas que fazem morada nas suas copas.
— Mas, senhoras árvores, eu já fui conversar com as flores. Elas sequer me deram atenção e, agora, as senhoras estão da mesma forma! Sabe de uma, donas árvores, com suas licenças, vou me aprochegar, afinal nos conhecemos não tem pouco tempo não, viu, é desde que eu montei rancho por aqui por estas terras que as senhoras vivem. E, de modo faceiro e desconfiado, fui me dirigindo ao sombreamento daquelas viventes alegres e felizes.
— Pra quê, meu amo, pra quê?!
Antes não tivesse me arriscado a tanto, sabia! Elas, como que aproveitando o momento pra me passar um especial, se valeram do vento e danaram a espalhar folhas ao chão a ponto de causar meu desequilíbrio.
Bambeei pra lá, bambeei pra cá, catei cavaco, dei um pulo — daqueles de gato com medo de água fria — e me estatelei a uns três metros de distância.
O indecoroso bem-te-vi, acompanhado da sibirina, do assanhaço e do sofrê, danaram a pipilar, como se em sorrisos largos fosse, certamente a mangarem de um caído indefeso, sem saberem a causa, talvez.
— Mas, seu bem-te-vi, até o sinhô, meu amigo de sempre, que me visita quando estou a trabalhar na varanda do meu rancho!
Lembra-se daquele dia que o sinhô pousou no piso da varanda do meu rancho, batemos um papo interessante e o sinhô me dissera que poucos moradores lhe davam atenção como eu?! Sinceramente eu não esperava que o sinhô se prestasse a isso, num sabe! Como é que pode o sinhô se enturmar com o assanhaço, a sibirina e o sofrê pra deitar mangação a um setentão que acaba de ser indesejado pelas senhoras árvores, como pode?! Isso é uma crueldade, saibam todos?!
A gargalhada pipilante foi maior do que eu esperava: a sibirina deitou a fazer voos rasantes ao meu redor; o assanhaço até que ficou meio que desconfiado e se pôs quieto, mas o sofrê não deixou por menos, fez questão de entoar seu canto característico, como a dizer que eu merecia sofrer tudo aquilo mesmo, seguindo-se os indecorosos anúncios do mestre bem-te-vi, também entoando seu canto característico e soltando vis longos, breves e curtos; parecia até o guarda Pelé orientando trânsito na Rua Chile, lá pelos idos dos anos 1970.
Olhei ao redor, quase a chorar, sacudi a folhagem — não tinha poeira porque as folhas não permitiram —, dei meia volta e aprumei no sentido do riacho. Queria me banhar.
Chegando ao riacho encontrei, de cara, um magote de lavandeiras pulando dum lado pro outro. Parecia até que já sabia do acontecido lá no campo das árvores — até nem duvido. O bem-te-vi não guarda segredos mesmo, deve ter se avexado a contar o acontecido.
O galo d’água, que estava de parte, me chamou em particular e passou a me historiar:
— olha só, seu moço, não quero que o sinhô diga a eles — somos aqui da patota da reserva, todos amigos e não quero desavença — mas não só o bem-te-vi, como também a sibirina, conversaram nestantinho com as lavandeiras e cochicharam de mansinho sobre um acontecido lá no campo das árvores. Deu bem pra divurgar que umas árvores tinham derrubado um sujeito, coisa e tal. Pelo que assuntei, eles pediram segredo. Mas as lavandeiras é que são fuxiqueiras e inconvenientes mesmo, meu sinhô.
Quando pus os pés na correnteza, lá me vem uma traíra velha, mas tão velha, tão velha, que deu pra divulgar os óculos de grau fundo de garrafa que ela usava. Sabe quem a estava guiando, naquelas águas cor de ferrugem, própria de riachos da região? Um caboge meia idade e profundo conhecedor daquela bacia hidrográfica.
Dum susto só, dei um pulo pra trás pensando tratar-se de uma enguia; escorreguei na lama e dei com o focinho numa ruma de tiririca que quase perco o fôlego.
— Mas, dona traíra, isso é lá hora da senhora me aparecer, nadando em plena calma, sem dar trelas a quem passa neste riacho?! Sinal dos tempos... sinal dos tempos!!!
Tal como as senhoras árvores, a dona traíra calada tava, calada ficou. Sequer olhou pra trás; fez um sinal pro caboge e seguiram viagem.
Mais um desprezo experimentado, além daquela “quebra de bico”, um muxoxo, espelhado pelo magote de lavandeiras.
Meu pensamento era um só: dar uma lavadinha nas partes sujadas pela queda no campo das árvores. Qual nada, meu sinhô, tive mesmo foi que tomar uma lavada geral de cabeça e tudo.
Voltei do riacho pensativo, resmungando até!
— Deus, meu Deus, o que teria acontecido comigo para que flores, árvores, pássaros, peixes, o escambau, tirassem o dia pra me ignorar e mangar de mim? O que teria havido?!
Tomei o caminho de volta pro meu rancho. Lavado deveras, mas cabisbaixo como antes, pensativo e resmungando até!
Indagava a mim mesmo:
— meu amo, o que foi que você aprontou esse tempo todo que nem as flores nem as árvores lhe deram confiança?!
Matutei, matutei e descobri.
E, acreditem, não tenho a mínima vergonha de dizer.
Durante onze meses e vinte e nove dias, sequer dirigi uma fala de afeto à flor; sequer me ative a conversar com as árvores, mesmo que fossem besteiras...... como, agora. Só porque é o dia delas, eu me apareço como se estivesse todos os dias com elas. Queria eu posar de bom-moço e, com palavras bonitas, saudá-las para, no dia seguinte, tornar a nova contagem de dias em silêncio pra depois lhes saudar?!
No fundo, no fundo mesmo, eu queria dizer às flores que as amo e às árvores que delas sou um ferrenho admirador.
Então, só devo me queixar de mim!
Viva a Primavera!!!
Agradecimentos ao escritor Darlan Zurc [http://www.darlanzurc.com] pela ajuda na revisão e ilustração do texto
Reserva Imbassai, Linha Verde, Bahia, Brasil, início da Primavera de 2021
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