Sobre escrever sobre não saber o que escrever
Quando não sabe o que escrever, escreve sobre não saber o que escrever. E quando não sabe o que escrever mas acha escrever sobre não saber o que escrever uma saída barata, aborrecida, pedante, preguiçosa, vagabunda, démodé e clichê, escreve sobre achar escrever sobre não saber o que escrever uma saída barata, aborrecida, pedante.
É assim: você envolve o vazio com um embrulho de metaconsciência até o vazio ganhar algum volume. Você impressiona, com este volume, apenas algumas leitoras mais novas que nunca pensaram sobre pensar, falaram sobre falar, escreveram sobre escrever. Então você embrulha o embrulho do vazio até o volume se passar por substância na expectativa de impressionar as mais experimentadas. E assim recursivamente. Eis a fórmula.
Quero dizer, eis o fracasso. Com esse circinal de embrulhos você se embrulha do mais fatal, isto é, de ironia. A ironia, esta síndrome, que enfia entre você e o mundo um plástico, uma cobertura de proteção a fim de que você se envolva com tudo, mas sempre à distância de um braço, sempre com o anteparo de um manto, sempre com a consciência de que está consciente de estar consciente disso.
É como a proverbial hipster que adere a tudo ironicamente. Usa gírias de gente velha (na ironia), usa camisa havaiana (na ironia), decora letras de músicas ruins (na ironia) etc. etc. A aderência irônica, viral que é, contamina e coloniza a aderência sincera.
Então escrevo sobre escrever sobre não saber o que escrever (sobre escrever…) metendo embrulhos de metaconsciência, metareferência, metalinguagem, meta-que-o-pariu. (Cause anything you can do, I can do meta, baby). E assim disparo na frente das velocistas vulgares, devagares e derrapantes, que são as que escrevem achando que uma fina camada de meta-qualquer-coisa é uau! Literais demais, as pobres atrasadas — lhes faltam ironia.
Mas a Ironia verdadeira — com I maiúsculo — é que sofrer da síndrome da ironia é pouco para apreciar com profundidade um texto tão meta quanto este. Pois para apreciar com profundidade um texto tão meta quanto este é preciso ter na verdade a saúde de ser sincero. E eu diria que se escrevo sobre escrever sobre não saber o que escrever é porque quero, cobiço, preciso esticar a ironia em seu limite e sair do outro lado do gradiente, pôr meus pés no grau um da sinceridade.
Quem sabe assim, talvez, embrulhando, metametando, irônica-ironicamente, quiçá, quem sabe, o volume que esconde o vazio vai mesmo emanando certa substância, criando algo de conteúdo. Como se o conteúdo, essa coisa que as coisas contêm, apanhasse todo mundo no ato e se divulgasse não dentro, onde todo mundo o procura, mas fora, na transcendência, no emergir, a parecer a vida que emerge do átomo e o átomo que emerge, sobretudo, de espaços vazios.
E desse jeito, na sinceridade, eu percebo e eu espero, sendo sincero, que você também: que existe algum desfrute especial em embrulhar o vazio e se envolver com os embrulhos como coisas reais, substâncias dignas de nota, amor e gozo, feito um texto em cujas palavras, para esconder o não ter o que escrever, se esforçam para serem mais do que veículos úteis e, sobretudo, mais do que enfeites à toa, saindo de seu estado-bibelô e ascendendo ao seu estado-brinquedo para edificar recreios de sentido e profundidade e deixar o meu escrever e o seu ler tontos de júbilo, que é para sairmos do texto com vontade de afirmar — ainda com sinceridade — daquele jeito que só o prosaico pode exaltar a poesia:
— Pô, até que é legal, até que é daora embrulhar o vazio. Fazer isso dá numas coisas.