Era uma vez uma terra estranha
Escrevi sobre Robenson Décembre a crônica "Em Terra Estranha" em setembro de 2018, poucos dias depois de conhecê-lo. Robenson vendia "chipas" num sinal de trânsito, em frente ao Capitão Bar, no centro de Foz do Iguaçu. O texto foi publicado no site literário "Recanto das Letras" e impresso no livro “Tertúlias Quixotescas” (Editora Caravana, Belo Horizonte, MG, 2020). Ao saber que era haitiano, contei-lhe já ter estado em seu país a trabalho por três meses, em 1997. Naquele rápido papo frente ao sinal vermelho, começou uma amizade que já incluiu convite para a festa de um ano de seu filho Samuel e ser apresentado à esposa Alice, baiana da gema.
No último 20 de setembro, às cinco da tarde, primavera batendo às portas, 39 graus à sombra, encontramo-nos de novo no mesmo lugar, em circunstâncias diferentes. O Capitão Bar já está aberto, alguns “habitués” saboreiam um chope gelado e algum petisco. A noite promete, a Pandemia começa a ser vencida. Escolhemos mesa na calçada, pedimos dois chopes e começamos a conversar. Quero conhecer mais da vida de Robenson, já casado com Alice desde 2017. Uma das primeiras novidades é que Samuel vai ter, em breve, um irmãozinho ou irmãzinha.
Entre um trago e outro, Robenson conta que nasceu em Porto Príncipe, capital de seu pais, em 1977. A história de migração da família começa com a própria mãe, Jeanette Duverné Décembre, em 1984. Ela escapa das dificuldades no Haiti para tentar vida nova nos EUA. Com ela vai o marido, Saint-Clair Décembre, porém os filhos Robenson e Johanne ficam no Haiti. Os pais vivem até hoje nos Estados Unidos, já na faixa dos 70 anos de idade. Na viagem, o precário barco afunda, muitos se afogam, Jeannete, grávida, se salva. A filha Chamine nasce meses depois em território americano.
Em 1990, já documentada nos EUA, Jeanette busca Robenson, então com 13 anos, e Johanne, o irmão mais novo, que ficaram no Haiti. No novo país, enquanto estuda, Robenson joga futebol americano, pensa profissionalizar-se, mas abandona a ideia. Ao terminar o ensino médio, Jeanette, ciosa do futuro do filho, o envia ao Haiti para estudar e praticar o francês, idioma oficial do país.
De volta a Porto Príncipe, sempre em movimento e olhos no futuro, Robenson identifica e aproveita oportunidades. Foi o período da crise de ferro no mundo. Na época, muitos estrangeiros iam ao Haiti para comprar ferro velho e Robenson ganha muito dinheiro com vendas. No meio tempo, aprende joalheria e faz anéis de noivado, é uma outra profissão, nada mal. Com a venda do ferro, ganha muito dinheiro, constrói casa para a família e, generoso, ajuda muitos parentes.
Em 2010, acontece o avassalador terremoto e muitos haitianos, sem casa e ainda contando seus mortos, são obrigados a emigrar. O Brasil é um dos destinos e ganha fama de terra de oportunidades. Em outubro de 2015, decidido, Robenson solicita o visto humanitário e embarca para São Paulo. Logo, conhece dois haitianos na rodoviária. Os dois estão bêbados e começa aí um diálogo que iria mudar seu destino, pois pensava ir para a Bahia:
- Você é africano ou haitiano?
- Haitiano
- Você tem dinheiro pra pagar bebida pra "nóis"?
- Sim.
- Você quer morar com "nóis"?
- Sim.
Morou três meses com os compatriotas, até que se mudou: os companheiros eram muito desorganizados e barulhentos. O golpe fatal na convivência aconteceu no dia em que um deles urinou em sua cama. Os dois dormiam num beliche e Robenson ocupava a parte inferior. Não era pra menos, isso lá são modos civilizados?
Depois dessa experiência, foi morar sozinho e trabalhou na construção civil por algum tempo. Porém, descontente, sem ver futuro em São Paulo, vai a uma agência de turismo e pergunta onde se concentram haitianos no Brasil. Na agência, disseram que em Cascavel, PR, havia muitos. Não pensa duas vezes e parte para o Paraná. Precisava encontrar compatriotas que já falassem o português, pois o seu ainda era bem precário e necessitava melhorar para progredir. Virava-se com inglês e francês, mas não era suficiente. O Brasil ainda é um país majoritariamente monoglota, saber português ainda é fundamental.
Chegou a Cascavel ainda com a ideia de ir para a Bahia. No entanto, o padre católico que o acolheu convenceu-o continuar pela região e sugeriu Foz do Iguaçu pelas enormes oportunidades no ramo do turismo para alguém que fala francês e inglês. Se algo desse errado, o padre o levaria de volta a Cascavel.
Dito e feito. Em 2021, Robenson, já empresário, criou os deliciosos “chips” de banana, de inhame e de batata baroa, dos quais já me declaro consumidor. Seus produtos têm a marca “Papito’s Chips”, embalagem, prazo de validade e informações nutricionais, de acordo com as exigências brasileiras.
Chegou a hora de pensar grande: procura um sócio brasileiro para viabilizar um produto novo, com área de consumo em franco crescimento. Venceu a Pandemia, conquistou confiança, encara e vence os desafios um a um. Agora, Robenson Décembre tem tudo para se afirmar definitivamente em terra cada vez menos estranha, pois é a terra de Alice, a esposa, de Samuel, o primogênito e do outro filho que vem por aí.
Félicitations, M. Décembre!