Se essa rua fosse minha...
Ao ler o texto de Mouzar Benedito para a Conhece-te de setembro, pensei: antigamente, as pessoas eram mais poéticas – ou tinham mais criatividade – ao nomear os logradouros. Os personagens machadianos, por exemplo, flanavam por ruas de nomes assaz interessantes: Rua da Vala, da Harmonia, da Alfândega, dos Ourives, do Comércio, dos Barbonos, de Mata-Cavalos, do Passeio, da Guarda-Velha, da Ajuda, do Parto e, principalmente, circulavam pela très chic Rua do Ouvidor. Todavia, não só por vias literárias caminha a humanidade. Aqui por estas bandas, temos exemplos da poética popular: Caminho da Vovó, Esquina do Pecado, Tia Velha, Pito Aceso, Vila Aprazível, Vila dos Amores, Capim Cheiroso, Alto da Boa Vista, Rua dos Bois, Água-limpa... Enquanto escrevo, as reminiscências sussurram-me endereços por onde zanzei na meninice: Rua dos Operários, Rua Nova, Praça dos Ferroviários, Sapecado, Xopotó, Bela Vista, Morro do Urubu, Morro do Querosene, Monte Celeste, Quebra Cabo... imaginação não faltava à gente “dos antigamente”.
Porém, veio a burocracia com a sanha de homenagear os poderosos e ilustres... Confesso: invejo aqueles que residem em endereços com nome de “flores, substantivos bons, ritmos, aves ou simplesmente palavras bonitas.” Ah, deve ser tão gracioso subscrever envelopes e lançar, sob nosso nome e do destinatário, Rua das Gardênias, das Borboletas, Alvorada, Vila dos Alfarrabistas, Beco dos Prazeres, Alameda da Sedução. Vejo-me na antessala de um consultório dizendo, com enlevo, à secretária que preenche meu cadastro: moro na Rua das Acácias, na Travessa da Felicidade, no Moro da Esperança, na Ladeira Vá em Paz... se bem que, neste caso, não deve ser muito bom, não: parece antecipar o diagnóstico médico. Na escola, que coisa linda e singela responder pra tia: minha casa fica na Rua das Mangueiras, na Praça Colibri, no Bairro dos Carvalhos, na Avenida dos Pirilampos, no Beco do Sossego, na esquina da Folgança com a Bem Aventurança.
Nestas terras antipoéticas, contudo, as autoridades preferem buscar nos anais da hipocrisia nomes pomposos para batizar os endereços. Daí a enxurrada de generais, coronéis, marechais, capitães, prefeitos, vereadores, governadores, presidentes, doutores e outros títulos piegas. Como diz Mouzar: tem cada canalha “importante”! Nas cidades pequenas – pequenas em território e mentalidade – as autoridades costumam desencavar nomes de gente que ninguém se lembra mais. E não venha o leitor dizer que o povo tem memória curta; na verdade, o povo não se lembra porque, se “tudo passa, tudo passará”, obviamente as pessoas que pouco ou nada fizeram também passarão. Se se enveredar pela História, descobre-se que os homenageados foram mandachuvas, seus parentes e asseclas, que não merecem consideração... é como naquela outra canção: procurando bem todo mundo tem pereba.
Na minha vida quase cigana, já troquei muitas vezes de endereço, mas nunca morei na Rua do Girassol ou na dos Janeleiros, na avenida do Poente, na Vila dos Literatos ou na Travessa Foliã. Ao contrário, todas as ruas onde residi foram batizadas para homenagear ilustres desconhecidos, os quais não tive/tenho o menor prazer em declinar seus nomes. Tristes trópicos onde se perdeu a sutileza até para nomear o endereço onde arrastamos o viver.
Feliz mesmo é o Alceu: em “Pelas ruas que andei” decanta os lugares que percorreu para encontrar inspiração. Infelizmente, sem vias com belos nomes e sem uma musa que valha uma caminhada, passo os dias na varanda à espera do sol. E, à noite, rogo aos santos que não me façam mudar de novo: já cansei de arrumar malas, encaixotar livros, montar e desmontar a mobília, carregar trouxa de roupas. Oxalá daqui eu saia apenas para o São João Batista; e não pense o leitor que me refiro à avenida: refiro-me ao cemitério que, por sinal, fica em uma rua cujo nome homenageia certo político... Ai ai. Se essa rua fosse minha, eu mandava rebatizar.