Minha pequenininha conquista
Hoje é o primeiro sábado, nos últimos 365 dias, em que não acordo com ressaca alcoólica. Não sei se comemoro ou se lamento a data.
Há motivos mais nobres para comemorar. Por exemplo: alguém que ganha na Mega-Cena; que fala Javanês; que consegue repartir uma maçã ao meio com as próprias mãos; que soletra "otorrinolaringologista" sem o auxílio de dicionário. Todas essas conquistas, segundo a última pesquisa IBOPE, merecem um brinde, um "Aleluia!", um "Obrigado, meu Deus, pela graça alcançada". Mas a minha conquista, esta minha conquista, diminutíssima conquista...
É uma pena eu considerá-la tão pequenininha se comparada às que passam na tevê e às que são reportagens nos jornais. Deu na televisão, no noticiário das oito, que, no Japão, cientistas estão desenvolvendo televisores que funcionarão sem controle remoto, apenas por comando de voz. Também há o caso da menina paraibana que, já aos 6 anos de idade, fala inglês fluente e cujos pais, orgulhosos e burgueses, creditam o fato à inteligência da garota, mas que a Paraíba inteira sabe que essa "inteligência" deve-se às aulas particulares e remotas que ela recebe. Sabem que essa "inteligência " não passa de privilégio.
Mas isso a tevê não mostra, e ainda mais uma tevê que em breve não terá controle remoto; que aceitará comandos apenas por mensagem de voz; que não costuma exibir a ressaca nossa de cada dia. Uma tevê abstemia e que esconde nossas verdadeiras conquistas, como a de um vendedor de picolé aqui de União, pai de seis filhos, analfabeto e de quase setenta anos mal vividos.
Esse senhor não ganhou na Mega-Cena, não fala Javanês, não soletra "otorrinolaringologista" sem ou com o auxílio de dicionário. Mas, com R$400,00, veste, cobre, alimenta ele e seus seis filhos. E, em vez de a tevê e os jornais divulgarem o heroísmo do nosso picolezeiro, falam sobre horóscopo, sobre a idade da rainha Elizabeth, sobre a "inteligência" da menina paraibana e, principalmente, sobre a iminente aposentadoria dos controles remotos das tevês.
Enquanto isso, no reino desencantado dos mortais, esse nosso picolezeiro e sua família vivem em anonimato. Um dia após outro, às vezes dois de uma só vez. Poderia deixar-se vencer pelo alcoolismo, pela depressão, por desanimo generalizado que tão frequentemente nos atinge. Poderia, e, se o fizesse, eu o compreenderia perfeitamente.
Esse nosso herói picolezeiro, no entanto, decide enfrentar a vida cara a cara e continuar sobrevivendo, um dia após o outro, às vezes dois de uma única vez. Incrivelmente sóbrio e cristão. Sua história é tão linda quanto à de Robson Crusoé, com a diferença de ser terrivelmente real.