NIVALDO DE CALÇA QUEIMADA
NIVALDO DE CALÇA QUEIMADA
A vida é feita de flashes. Pequenos episódios que permanecem em nossas lembranças, sem grandes desdobramentos, que nosso cérebro guarda a sete chaves. Ocasionalmente, como a maioria das coisas que acontecem na vida, essas pequenas histórias afluem ao nosso consciente e recordamos com detalhes o que aconteceu. Pelo menos, esse é o processo que acontece comigo. Lembro de uma ocorrência, penso em registrá-la em meus escritos e, se não o faço, a recordação se esfuma misteriosamente. Dias depois, lembro que tinha uma história super interessante para escrever, mas não lembro qual era. Esforço-me, logicamente em vão, e nada de voltar àquela janela aberta na mente. Só resta esperar para que, um dia, o arquivo de minha memória se reabra na página certa e permita o registro. Assim foi com essa estória, que estou há tempos para contar, ocorrida com um amigo de infância na saída das aulas do Instituto Estadual de Educação Martim Afonso, em São Vicente.
Na época que iniciei o curso ginasial (equivale hoje ao período da quinta à nona série do ensino fundamental), tudo era novidade. Um professor para cada matéria, matérias novas como Latim, Francês, Canto Orfeônico. As aulas começavam às sete da manhã e se estendiam até as onze e meia. Entre as aulas havia um intervalo de cinco minutos, o suficiente para a troca de professores. Os intervalos entre a segunda e a terceira aulas eram maiores, duravam quinze minutos e os alunos podiam ir ao pátio brincar, conversar, utilizar os banheiros e fazer um lanche trazido de casa ou comprado na cantina da escola. Era à hora do recreio. Imagina-se o que é soltar duzentos ou trezentos jovens entre 11 e 20 anos por quinze minutos para fazer tudo isso. Os mais velhos, cursando o curso secundário já no final da adolescência, saiam calmamente, aguardavam a hora certa de ir ao banheiro ou à cantina e eram respeitados por aquela turba de moleques pré-adolescentes que saiam aos berros e correndo para entrar nos banheiros ou ir à cantina. Logo se formavam grupos de brincar de pegador, as meninas jogavam queimada ou ficavam em grupinhos trocando confidências. Mas os meninos eram incontroláveis. Berravam, corriam e muitas vezes brigavam. Era a parte do dia que os inspetores de alunos mais trabalhavam. Dona Neves, “seu” Sérgio e outros, sempre estavam atentos para organizar o recreio, como se isso fosse possível. Tocava uma campainha estridente anunciando o final recreio e a galera iniciava retorno às salas de aula para a segunda parte das aulas diárias. Cinco minutos depois, nova campainha anunciando o prazo final para entrada na sala. Seguiam-se duas aulas para a liberação dos alunos para a volta às suas casas. Os alunos saiam das salas e se dirigiam a um grande portão de chapa metálico e diante dele ficavam aguardando uns poucos minutos até a abertura do mesmo. Um dos inspetores aparecia, e diante de um mar de alunos enlouquecidos para sair, fazia uma rápida preleção para que saíssem ordenadamente e abria o portão. Era mais ou menos como se houvesse uma enorme tubulação de água rompida e um verdadeiro esguicho com centenas de alunos de camisa branca e calças azul marinho ocupava instantaneamente a Rua José Bonifácio da avenida da praia até a Rua Martim Afonso. Mas o ápice da saída era o momento de abertura do portão, os alunos saiam correndo em disparada, às vezes se atropelavam, caiam e levantavam-se para continuar a correria. De todos que ficavam grudados ao portão, Nivaldo não perdia uma dessas saídas a jato. Ficava agitando e gritando quando demoravam em abrir o portão. Era um negro forte meio gordo, simpático, de sorriso largo de dentes perfeitos Amigo de todos, de família abastada, muito mimado.
Era época de festas juninas. Nivaldo, com o bolso das calças repleto bombinhas de S. João, vira e mexe tirava uma caixa de fósforos de um bolso e uma bombinha na outra. Riscava a bomba e saia sem demonstrar que ele era o acendedor de bombinhas. Hora da saída, aquele alvoroço frente ao portão, Nivaldo foi um dos primeiros a partir em disparada Rua José Bonifácio acima como se estivesse disputando uma corrida. Após uns cinqüenta metros, um verdadeiro matraquear de bombas e, no meio da turba, ergue-se uma nuvem de fumaça, Nivaldo com as calças em chamas, tirou as calças no meio da rua e, de cuecas e com a perna queimada pisoteou aquela bateria de bombas até a última explodir. Chorando, vestiu a calça queimada. Havia se esquecido de colocar as bombinhas e a caixa de fósforos em bolsos distintos. Com a correria as bombas se atritaram com a caixa e, numa verdadeira reação em cadeia, começaram a explodir. Nivaldo desistiu de levar bombinhas para a escola. Até hoje deve ter uma bela cicatriz da queimadura.
Paulo Miorim 24/09/2021