Pensando bem, até que ela conseguiu voar.

Levou tempo, muito tempo, para que ela se descobrisse autista. Saiu à procura de leituras diversas, sozinha, como sempre, na tentativa suprema de se entender. Sim, ela apresenta todas as características. Desde menina, muito séria, ela era poucos sorrisos. Achava ruim quando sua mãe mandava que brincasse. A mãe lhe falava duro, às vezes chamando-a de anormal. Não, ela não sabia brincar, se entregar a uma boa risada, correr, pular corda. Do alto da sua senilidade sentimental, tudo isso era coisa que devia ser deixada para os outros. Ela não teria esse direito. Ela era... diferente.

Nunca soube explicar essa diferença, o corpo mais duro, tenso e com os ombros pendentes. Levava bronca, sim, sempre, cotidianamente. Bronca por que? Porque existia. Simples assim. Mas ela pouco falava sobre seus sentimentos. Ela se sabia errada, diferente. Era essa a palavra que a perseguiu por anos, longos e morosos anos. As suas referências familiares não lhes eram simpáticas, afáveis. Nada disso. Mas a s reprimendas... se derrubava um garfo, uma caneta sem a tampinha no sofá, se arrumava os óculos na hora de uma foto ser batida, se, ao pôr à mesa , colocasse os copos em primeiro lugar... tudo era motivo para ser chamada de “absurda pessoa”.

Passou a namorar cedo porque um colega apareceu se dizendo apaixonado. Que loucura! Que absurdo!!! Juras de amor aos 13 anos deidade... mas ela acreditou e também se disse apaixonada. Com o tempo, foi a sua desgraça! Ele, bonitão, inteligente, dono do pedaço. Ela, de óculos pesados, triste e deprimida, de olhar distante, sem nenhuma presença... Ela conheceu cedo demais a desventura da vida.

Mas com o sofrimento da solidão, do silêncio, ela venceu. A vergonha foi o seu motor. Vergonha da exclusão, de estar na periferia da alma das pessoas, de sempre tentar ser aceita na família e na escola. Resolveu vencer na vida através da vingança. Não a vingança odienta, mas acreditando: ” vou ser melhor que vocês. Vou ser profissional e brilhar. Os outros haverão de me respeitar. Não vou dever nada a ninguém. Vou prosperar e ter a minha casa, o meu espaço, os meus livros. Vou saber me sustentar com dignidade”.

Venceu. VENCEU. Quando da formatura na universidade, só a irmã caçula foi ao evento. Nenhuma fotografia, nenhuma pizza na janta, nenhum guaraná. Nada! Passou a vida para vencer. Todo o suor do planeta respingou do seu rosto. Hoje ela se olha, se acha bonita, com olhar doce e bom, com direito a viajar, contemplar... viver em paz. Tem vontade própria. Preferiu a distância das pessoas que a criticaram sempre e pouco lhe ajudaram. Não entenderam nada de sentimento, não souberam dar abraços, de olhar com empatia. Tiveram lábios para ferir e, hoje, algum entendimento de que foram menores.

Kika Moraes
Enviado por Kika Moraes em 21/09/2021
Código do texto: T7347508
Classificação de conteúdo: seguro