VIVER DUAS VEZES
Às vezes, pensando na morte da bezerra e sem nada melhor para fazer numa noite chuvosa de sexta-feira, você entra na Netflix. Procura daqui, desvia dos filmes muito longos e por fim resolve assistir alguma coisa curta em espanhol que até agora você ignorou.
Uma hora e quarenta minutos depois, você riu, chorou – às vezes numa mesma cena – e jurou que vai tentar entender melhor quem tem o Mal de Alzheimer, ainda que (graças a Deus) ninguém da sua família sofra dele. Esta é a experiência para quem resolva assistir VIVER DUAS VEZES, filme espanhol de 2019, disponível na Netflix e que muitas vezes passa despercebido em meio à tanta oferta de blockbusters.
O filme tem momentos de emoção e momentos de riso, com um humor agridoce que não tem como não se identificar. Em nenhum momento a doença é vista com banalização ou comiseração, mas sem esconder o que ela causa na mente da pessoa e na convivência familiar. E, mais do que abordar a doença, é uma história de amor e de conflitos familiares, contada com leveza e ironia, sem estereótipos.
Tudo começa com o Sr. Emilio (Oscar Martínez), um professor universitário de Matemática que sempre foi muito estudioso mas que, de repente, começa a ter os primeiros sintomas do Alzheimer. Com medo de esquecer tudo, Emilio decide ir atrás do primeiro amor de sua vida, Margarita (Isabel Requena), e, para isso, contará com a ajuda de sua filha, Julia (Inma Cuesta), que, frustrada, trabalha com representação de remédios para médicos; o marido dela, Felipe (Nacho López), que está desempregado mas “trabalha” como coaching e perturba todo mundo com sua positividade; e a filha do casal, Blanca (Mafalda Carbonell), uma garota de 11 anos manca e totalmente ligada no celular.
O que provoca a empatia de quem assiste são os diálogos afiados entre Emilio, a filha e a neta. Inicialmente avesso à tecnologia, aos poucos, Emilio adere a ela por influência da menina, que resolve ajudar o avô a encontrar seu amor de infância, mesmo sem o conhecimento da mãe. No dia em que ele decide ir até a cidade de Navarra para reencontrar Margarita, a neta exige ir junto. Quando Emilio tem um dos “brancos” causados pela doença no trajeto e precisa ser resgatado pela filha, o restante da família entra na empreitada de encontrar Margarita. Destaque para a cena em que Julia descobre que Emilio tinha outro amor além de sua mãe.
A busca por essa mulher é uma odisseia cômica e dramática pela cidade. Oscar Martinez está maravilhoso como o protagonista e sua atuação é ótima, conseguindo captar perfeitamente a rabugice do personagem e o avanço progressivo da doença. Os diálogos agridoces com a neta são a parte mais interessante do longa. Impossível não se emocionar ou se identificar com a família que enfrenta, além da doença do patriarca, a separação dos pais de Blanca devido à infidelidade de Felipe.
O final do filme é belíssimo, impossível não se emocionar. Mas não vou contar para não estragar a surpresa e diminuir a emoção.
Viver duas vezes é um filme perfeito para quem procura emoção e diversão e fica ainda melhor se for assistido no idioma original, por que a sonoridade da língua espanhola se perde na dublagem. Um detalhe: a maioria da equipe do filme (diretora, roteirista, entre outras) é de mulheres, o que certamente explica a sensibilidade com que temas como doença, separação e conflitos familiares são tratados. Também é ideal para quem quiser saber um pouco mais sobre o Alzheimer, sem dramatizações banais sobre a doença.
O filme ganha de 10 X 0 das comédias brasileiras, sempre caricatas e exageradas. É indicado para maiores de 12 anos, mas pode ser assistido por toda a família, pois não tem violência ou pornografia implícita como algumas novelas tem.