Crônicas Médicas - O que você teria feito?
Para muitos, viver a medicina é estar em serviço vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana, mas, seres humanos que somos, precisamos também de um tempo de descanso. Contudo, como profissionais da saúde, nunca sabemos quando alguém precisará de nossa ajuda. Pode ser no leito de um hospital durante os atendimentos de rotina, pode ser em alguma emergência no Pronto Atendimento ou pode ser, inclusive, em uma noite com os amigos na pizzaria. Nós nunca sabemos quando e o que pode acontecer e, por isso, devemos estar sempre preparados para agir.
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Era 11 de setembro, por volta das onze horas da noite, e o aniversário de um de meus amigos de faculdade já se encaminhava para o final. Todos sentados à mesa, conversávamos e ríamos de maneira descontraída, uns com copo de cerveja, outros com caipirinha nas mãos. Assim, curtíamos o fim de uma festa bastante animada em uma das pizzarias da cidade.
Contudo, como já foi dito, nunca sabemos o que pode acontecer perto de nós. Um dos garçons, que, por sinal, já havíamos reparado desde o começo da noite que se encontrava bastante agitado e com tremores em mãos e braços, caiu bem ao meu lado.
De pronto, ouvi apenas o som de algo pesado caindo ao chão, acompanhado pelo barulho típico de uma batida de cabeça. Quando voltei minha atenção para o local de onde o som viera, travei por alguns milissegundos. “O que eu faço agora?”, eu me perguntava mentalmente.
Sentados comigo, outros alunos de anos mais avançados poderiam, talvez, oferecer melhor suporte, mas estavam mais distantes do que eu. Desse modo, quando vi um de meus colegas ajoelhando-se próximo ao homem, também me prontifiquei a ajudar. Neste momento, observando a cena, um de meus primeiros pensamentos foi de que poderia se tratar de uma crise convulsiva e não um simples desmaio.
Enquanto meu colega dava atenção aos sinais vitais junto de outras três mulheres que haviam se aproximado (viria a descobrir que duas eram médicas e a terceira era amiga do garçom), eu mantive protegida a cabeça do senhor contra possíveis lesões. Outros ao nosso redor afastavam mesas e cadeiras, dando espaço para evitar outros acidentes.
Ali, sem muitos recursos, com a crise cessando em um ou dois minutos, posicionamos o garçom lateralmente para evitar que se engasgasse com eventual vômito e, avaliando sempre seu estado geral e sinais vitais, esperamos que o homem recobrasse a consciência enquanto esperávamos pelo serviço de emergência. Em pouco tempo, o homem já respondia de forma relativamente articulada às perguntas direcionadas a ele.
Com palavras de suporte, as médicas o acalmaram, e eu, sem mais nada a acrescentar, afastei-me e deixei que elas conduzissem a partir do momento em que o colocaram sentado. Rapidamente o Corpo de Bombeiros chegou e deu seguimento ao atendimento, deixando-nos, novamente, à vontade para curtir o resto da noite, agora com a adrenalina um tanto elevada.
No entanto, minhas reflexões sobre o acontecido vão além do fato de pensar que, em poucos anos, seremos nós, agora estudantes, a assumir eventualidades como essas. É claro que amanhã ou depois pode ser que eu seja o médico a conduzir um caso assim, mas, ali, percebi um problema que merece mais destaque: a falta de conhecimento da população em geral para lidar com crises convulsivas.
Em primeiro lugar, muitos estigmas, rótulos e mitos abraçam a convulsão em uma cegueira que precisa ser desconstruída. Com isso, outras questões vêm à tona.
Logo no início da crise, os olhares curiosos se direcionaram para o garçom e, não bastassem os olhares, as pessoas começaram a se aproximar do homem, criando um ambiente inadequado para a condução do caso e a segurança da vítima. Uma dessas pessoas, inclusive, sugeriu que colocássemos a mão na boca do homem para evitar que ele engolisse a própria língua. Caso houvéssemos seguido seu conselho, provavelmente teríamos perdido alguns dedos, pois, durante a crise, movimentos mastigatórios extremamente potentes se fizeram presentes.
Ainda, durante a conduta das médicas, um homem visivelmente alterado pelo álcool começou a gerar desconforto e medo nos demais com gritos de que não devíamos tocar no garçom. A cada avaliação de sinais vitais, um berro de que aquilo era errado ecoava pela pizzaria. Por sorte, alguém conseguiu fazer com que ele deixasse as médicas realizarem seu trabalho.
Momentos depois, enquanto o garçom recobrava a consciência, um cliente do estabelecimento achou válido mandar boas energias. Assim, parou à frente do homem e deu-lhe uma bela de uma sacudida na cabeça do senhor ainda grogue. As médicas novamente intervieram e pediram para que aquilo não se repetisse. Outro, ainda, pediu para que jogassem água em seu rosto já que ele estava suando muito.
Por fim, e, na minha opinião, a situação mais complicada, um homem, também levemente embriagado, tentou, à força, levantar o garçom, ainda que ele se mostrasse contrário àquilo. Todos nós ao redor dissemos para que ele permanecesse ali, sentado no chão até a chegada do socorro.
“Quem é você para me dizer o que ele deve ou não fazer?”, questionou o homem, levantando a voz contra as duas médicas.
“Senhor, deixa ele aqui no chão”, uma delas respondeu de forma calma, mas bastante determinada.
“Quem é você para me falar isso?”, perguntou novamente, com a voz ainda mais alta, avançando contra elas. O homem precisou ser contido pelos amigos e foi retirado do local.
Caso você também se pergunte o porquê de deixá-lo no chão, a resposta será essa. Primeiramente, ele não havia recobrado cem por cento da consciência e podia, ainda, ter alguns déficits motores, o que poderia derrubá-lo novamente. Em segundo lugar, caso o garçom tivesse uma nova crise, estar no chão seria o mais seguro para evitar novas quedas e possíveis lesões. Ainda, sem saber o que o levou a ter a crise, não dá para descartar a possibilidade de que ele viesse a ter um mal súbito ou outros desmaios; novamente, toda a conduta deveria ser feita com o paciente no chão. Então, por que o levantar?
Com essa crônica, espero que as pessoas procurem novas informações sobre crises convulsivas, espero que leiam sobre o assunto e busquem aprender o básico para ajudar um amigo, um parente ou mesmo um desconhecido em caso de necessidade. Desejo, também, que os profissionais da saúde se disponham a abordar esse tema em diferentes ambientes. A equipe da pizzaria, por exemplo, poderia ser treinada para conduzir situações como essa. E se não tivesse nenhum médico ou estudante de medicina por lá, como o caso teria se desenrolado?
Dia 11 de setembro foi o garçom da pizzaria, mas amanhã pode ser eu ou pode ser você. Assim eu te pergunto, dentro do seu contexto, será que você ou a pessoa com quem você divide o teto saberiam cuidar de uma situação assim? Para que você possa refletir: o que você teria feito?