Segunda Dose
Como um paciente frustrado de uma clínica de recuperação ou um participante dos Alcoólicos Anônimos, que teve uma recaída, eu tomei a segunda dose. Mas foi a segunda dose da vacina de Oxford contra o coronavírus.
Eric Clapton, excelente guitarrista, reclamou que a vacina inglesa AstraZeneca acarretou alguns efeitos colaterais. Entre os quais, não conseguia mais tocar guitarra. Vendo isso, notei que também não tocava o instrumento de cordas como o músico inglês. Só pude me comparar ao guitarrista pelas dores no corpo e a febre. Como sempre desconfiei desses imunizantes, acho que encontrei a brecha para tentar uma indenização do governo.
As vacinas estão respeitando a lógica das grifes, tem desde a mais valorizada até a menos. Eu tive certeza desta teoria imbecil quando a Fernanda Torres, entusiasta do imperativo #vacine já, se recusou a oferecer o braço para qualquer seringa. A atriz queria se submeter apenas ao imunizante norte-americano Pfizer - em parceria com a alemã BioNTech. Pois a Pfizer é a grife dos ricos e famosos, é a vacina dos que possuem o sangue azul, de quem pode entrar num avião para ser vacinado nos Estados Unidos.
A Oxford AstraZeneca tem a cotação mediana, mas ainda boa, afinal “é coisa das Oropa”. Quem tem o hábito inédito de escolher a marca da vacina, é conhecido como “sommelier de vacina”. Estou pensando seriamente em adquirir esse costume. Vou tentar com a vacina da gripe comum, apesar de ser “só uma gripezinha”.
A CoronaVac é discriminada porque é, como o vírus, chinesa. Como a comparação é com grifes, a CoronaVac está para a Pfizer como a Galeria Pajé para o Shopping Higienópolis.
Depois da segunda dose não notei nenhuma alteração. Dessa vez não passei mal, mas lamentei que o dom de Eric Clapton tampouco foi transplantado para mim. Fiquei com medo de arriscar a velha introdução de Starway to Heaven, do Led Zeppelin, e continuar tocando mal, desafinado e fora do tempo. O mais próximo que cheguei do guitarrista britânico foi ter assassinado Tears In Heaven no Videokê, mas isso foi há muito tempo.
Agora eu posso contrair a Covid-19 sem ninguém me condenar por isso. Não terei que prestar esclarecimento para Omar Aziz, responder “sim” ou “não” para Renan Calheiros, explicar para Otto Alencar a diferença entre um vírus e um protozoário, me submeter aos “amplos” conhecimentos geográficos de Humberto Costa e suportar a voz do Randolfe Rodrigues.
Agora não preciso mais providenciar um passaporte sanitário falsificado num camelô da Praça da Sé. Segundo a decisão dos congressistas, eu já sou um cidadão de primeira classe.