Perguntas retóricas
— Padre, padre! É pecado a gente desejar a morte do próximo?!
Já faz tempo. Remonta à época em que ele ainda acreditava em Papai Noel, Comadre Fulôzinha, Homem do Saco, Lobisomem. Mas continua atual e necessária. Foi uma pergunta feita durante uma de suas visitas, por influência materna, ao "homem da capa preta".
Morava na zona rural de um município feudalizado, e durante a semana acumulava pecados. Aos domingos, de quando em quando, levavam-no, a contragosto, às intermináveis missas dominicais e seus cânticos estridentes, para o redimirem (como se isso fosse possível). Lembra-se de uma dessas ocasiões, em que foi ter com o sacerdote local, um padre gordo, rosado, de excelente oratória.
A princípio, não lhe suscitou respaldo a figura robusta e vermelha do sacerdote. Lembrava-lhe a dos donos de terras e novilhas, uma meia dúzia de bárbaros, que domava a galope toda a região. Contudo, essa impressão durou pouco e o padre passou a lhe inspirar confiança. Falava convicentemente sobre Deus, paraíso, eternidade, conhecia, como poucos, a definição eclesiástica do que vinha a ser pecado. Ouvi-lo era como ouvir os conselhos da avó.
A relação entre eles foi aplainando, o receio mútuo esmorecendo. Foram tornando-se quase amigos. Com o tempo, nem resistia fervorosamente a ir às missas dominicais. E então veio-lhe aquele dia, em que inquiriu pessoalmente a sabedoria do sacerdote.
Lembra-se de ter-lhe feito a mesma pergunta indiscreta que agora se faz, só que agora com objetivo puramente retórico. Àquela ocasião, era para valer. Interessava-lhe a resposta e a provável admoestação do sacerdote. Estava curioso para saber a resposta do representante de Deus sobre a pergunta indiscreta.
Não esperou estarem a sós, no confessionário. Então falou ali mesmo, em meio a todos aqueles fieis, para assombro do homem da capa preta:
— Padre, padre! É pecado a gente desejar a morte do próximo?!
O homem da capa preta não teve a oportunidade de lhe responder nem de admoestá-lo. A mãe do peralta não deixou. Retirou-o, morta de vergonha, às pressas da missa e o levou para casa, onde não só ele recebeu a resposta, mas aprendeu que certas perguntas não devem ser feitas em público e ainda menos perto do altar.
Hoje, idoso, ele se faz a mesma pergunta que, à época, jovem e curioso, fez ao padre. Hoje, contudo, a finalidade é puramente retórica. Não se lembra de ter, apesar da propaganda, não se lembra de, em algum momento desta estadia, ter almejado eternidade, paraíso, estar ao lado do Altíssimo e congêneres. Sempre teve curiosidade, está claro, mas também foi homem de pouca fé. A imagem que tem do paraíso, conforme a propaganda veiculada, é de um lugar insosso, inodoro e incolor. Costuma, nesse particular, lembrar Antônio Maria e recitar o "ensinaram-me, em menino, que todos os castigos vêm do céu, de Deus. E que, mesmo assim, eu deveria fazer tudo para ir para o céu. Não quero".
De modo que esse idoso, apesar da idade, continua curioso, peralta e desejando a morte de um certo semelhante: um semelhante de nome e CPF diferentes do de antes, mas igualmente bárbaro, desumano a olhos vistos, escravizador legalizado. É tomado por esse sentimento humano e em muitos freado, que é a revolta contra uma certa "ordem estabelecida" — tal qual antes, o faz em legítima defesa, pois esse semelhante, afinal, também lhe deseja o pior, o fim.
Esse nosso idoso peralta, antes, desejava a morte de um tal latifundiário que infundia o terror em pessoas honestas e trabalhadoras do município feudalizado. Um certo senhorio que escravizava e submetia a condições análogas à escravidão gente do eito; gente crente que esperava o domingo chegar para receber a oratória do homem vermelho, discursivo, e as recompensas que ele trazia do céu, como interventor do altíssimo, para os espoliados.
Hoje sua revolta recai sobre uma certa ordem estabelecida por um alguém igualmente poderoso que se acha dono de um poder pseudo-colegiado, que não quer o bem de ninguém, nem o próprio (parece); que desconhece o h2o e oxigênio de que é feito; que se diz imaculado e de fino trato. E todos fingimos acreditar (não queremos incomodá-lo), acreditar nesse homem fino, honesto e cristão que, embora não possua terras incatalogáveis, dinheiros incontáveis, não more em Paris ou em Los Angeles, não costume andar de Poche, tem a posse de uma das armas mais poderosas que o deus homem inventou: uma caneta mágica. Uma caneta que nos fere mais que o chicote do senhorio e também capaz de aplacar, de uma só canetada, a fome de milhões de pessoas; de empregar multidão de desempregados; de salvar milhões de vidas. Mas que não o faz, talvez por capricho, ou perversidade mesmo.
"E onde está Deus? Por que não intervém e salva todas essas vidas? ", pergunta-se, dando-se conta de que talvez seja essa mais uma pergunta retórica. Então se cala e lhe vem à memória a figura vermelha e retórica do sacerdote de sua tenra idade. Sente que lhe vem para admoestar. Ou para lhe saudar com aquele hino celestial: "Jesus te ama!" "Mas se me ama mesmo, por que não..." Então decide parar com as perguntas retóricas e ver se já é hora de alimentar galinhas.