Discurso de um Leigo para uma Missa Budista
Os rituais budistas japoneses preveem que se façam periodicamente missas, chamadas "hôji" (Serviço do Dharma), em homenagem aos mortos. Elas devem acontecer após uma semana, 49 dias, um ano, três anos, sete anos e assim por diante.
Não sou adepto da religião, mas a forte tradição cultural presente na ligação que minha mãe teve com ela, do que resulta uma subliminar pressão por outros familiares, ainda que estes também não sejam tão adeptos, me obriga a seguir esses rituais, embora a contragosto. É a força do consenso sócio-cultural fazendo-se presente contra o indivíduo. Por mais que este se considere livre das amarras religiosas, não consegue se livrar inteiramente dos costumes que as amparam. Veja só, eu, um leigo, um não-adepto, praticamente estou “eleito” como o coordenador da missa de um ano para a minha mãe, responsável pelos convites, pela comida, por providenciar o monge, etc. Mas não sou inteiramente refratário a essa religião, pois me parece não haver dogmas rígidos a serem seguidos, com exceção talvez do da reencarnação. Daí provavelmente derive o respeito extremo aos mortos, do que resultam essas missas periódicas.
Podem ser feitas no templo ou na casa de algum parente, de preferência naquela onde o finado residia e provavelmente exista um pequeno altar chamado "butsudan", uma caixa de madeira trabalhada, dentro da qual destacam-se a estatueta de um pequeno Buda talhada em madeira e tabuletas com os nomes dos mortos, aos quais se oferecem pequenas porções de comida. Vasos de flores ladeiam o altar. Convidam-se os parentes e amigos, que fazem ofertas voluntárias em dinheiro, dentro de envelopes, de acordo com as posses e a proximidade familiar, como auxílio para as despesas da família. Se você fizer qualquer menção à recusa dessas ofertas, você é veementemente criticado e até ridicularizado.
O monge comanda a cerimônia, recitando seus sutras, enquanto os presentes, um a um, após uma mesura, oferecem incensos no pequeno altar, gesto que é seguido por outra mesura com as mãos justapostas. Depois o monge faz uma breve palestra, geralmente explicando o significado do nome do homenageado e ressaltando suas qualidades. Após terminar sua parte, algum membro da família mais próximo do morto encerra o evento com comentários pessoais e agradecimentos aos presentes. Em seguida, ele convida a todos para uma confraternização com um lanche, geralmente composto de iguarias da culinária japonesa e previamente preparado. Distribui-se uma pequena lembrança a cada família presente à cerimônia.
No dia 27/10/2007 fizemos a missa. Convidamos apenas os parentes e amigos mais chegados, mais ou menos uns vinte e cinco, o que permitiu que a fizéssemos na minha casa. Usei a sala da televisão para o evento. Ficou um pouco apertada. O monge é ainda bem jovem, é japonês, está no Brasil há cinco anos. No caminho para trazê-lo do templo até a casa, diz-me modestamente que ainda não sabe falar bem o português. No entanto, faz a palestra em japonês e em seguida, em um português bem inteligível. Ressaltou virtudes que devemos cultivar, como a solidariedade, a compaixão. Depois da palestra do monge, coube a mim encerrar a cerimônia.
Meu discurso, que tentarei expressar da maneira mais fiel possível, foi mais ou menos assim (os textos entre parênteses explicam termos ou uma ação paralela ao discurso):
“Quero parabenizar o ‘bonsan’ (monge) porque ele está há cinco anos no Brasil e diz que não sabe falar português. Imagine quando souber falar.
Desculpem-me o aperto da sala.
Acho importante que de vez em quando ocorram eventos como esse, em que parentes e amigos se reúnem para homenagear pessoas que se foram.
Nesse período de um ano após a morte da minha mãe não me lembro de ter sonhado alguma vez com ela. Mas relatei à minha irmã (olho para minha irmã mais velha) que anteontem sonhei. Dentro do sonho ela estava morta, mas ressuscitou para uma festa que fizemos para ela. Talvez toda a preparação para a missa tenha influenciado, mas o sonho mostra o quanto é forte ainda a presença dela em mim.
Sei que vir aqui falar na frente de vocês não é fácil, é difícil para mim também. Até tentei passar a bola para alguém (olho para minhas irmãs) mas acabou sobrando para mim. Mas queria dizer que se vierem aqui falar, sejam sinceros, falem o que sentem. Na última missa que fizemos, de 49 dias, falei algo que depois resultou num fato inesperado. Eu disse naquela ocasião que deveríamos valorizar nossas mães enquanto estivessem vivas, para que, se morressem de repente, não nos arrependêssemos por algo importante que deixamos de fazer por elas. Há muito tempo eu dizia a minha mãe que a levaria a Curitiba para visitar uma irmã sua. Mas sempre havia algum problema que impedia a viagem. Então, ela faleceu sem que esperássemos e não realizei seu desejo. O que eu disse tocou muito o filho da senhora Kamikihara, que reuniu os irmãos e promoveu uma grande festa para sua mãe, na chácara do Fisk, com direito até a um filme caseiro sobre a família. Ele me disse que o que eu dissera na missa o motivara a realizar aquela festa. Bem, isso me deixou muito contente, pois algo dito sem muita pretensão resultara numa coisa tão boa. O filho da senhora Kamikihara apreendera, escutara o que eu dissera.
Isso me leva a lembrar-me de uma crônica chamada 'Escutatória', do Rubem Alves. Nela o autor diz que existem cursos de Oratória, mas não há cursos de 'Escutatória'. Ele diz que é fácil falar, mas é muito difícil saber ouvir. Quando ouvimos alguém, não estamos assimilando totalmente o que ele diz. Enquanto nosso interlocutor fala, ao invés de prestarmos atenção, ficamos pensando no que falaremos a seguir para retrucar. Por exemplo, quando o ‘bonsan’ fala na sua palestra, estaremos assimilando totalmente o que ele diz? É comum ficarmos divagando durante uma palestra, enquanto o orador fala. Ficamos pensando nas contas a pagar, no que vamos fazer no fim de semana. Rubem Alves cita um amigo que foi aos Estados Unidos e assistiu a uma reunião de índios. Ficam todos em silêncio absoluto. Aí alguém resolve falar, todos escutam. Ele pára de falar, volta o silêncio, agora todos refletindo sobre o que foi falado. Se logo após ele acabar de falar um outro começa a falar, considera-se que este último está sendo deseducado, pois não assimilou a fala do primeiro. Quando alguém fala, seja numa palestra, seja numa conversa, é preciso que limpemos nossa mente para absorver tudo o que o outro está dizendo. Não é assim na meditação? Limpar a mente e concentrá-la num único pensamento.
Por que estou dizendo tudo isso? Bem, quero fazer um exercício aqui (dirijo-me ao altar, pego uma fotografia da minha mãe e mostro-a ao público). Acho que esta é a melhor fotografia que temos da minha mãe. Peço que nos concentremos nela por alguns instantes (coloco de volta a fotografia no altar). Vamos lá então? Por um minuto. Vamos fechar os olhos (todos fecham os olhos, inclusive eu). Vamos lá, vou conduzindo...Pensemos em como ela era... Como ela ria...Como ela falava...Como ela conversava...Vamos lá, apenas por um minutinho...(silêncio absoluto por um minuto...).
Pronto, muito obrigado, obrigado ao ‘bonsan’. Temos agora um lanche para uma confraternização. Será pelo sistema ‘self-service’. Não temos mesas, portanto cada um se sirva e se acomode nas cadeiras. Muito obrigado, obrigado ao ‘bonsan’.”
Bem, não sei se fugi à tradição budista ao fazer um discurso desses. Talvez a velha guarda tenha se sentido um tanto incomodada por um discurso tão inusitado, ainda mais falado em português, ininteligível para alguns deles, que só entendem japonês. Mas, de certa forma, diminui-me bastante o desconforto pelo sentimento de culpa saber que o jovem monge da missa está recebendo críticas dos mais velhos por não estar conduzindo as missas de acordo com os procedimentos tradicionais. Ele me intriga. É humilde, dirige uma ONG e tem por desejo unificar as duas correntes budistas da cidade. Este último projeto também traz críticas dos mais velhos.
Mas, como em tudo, não deve haver evolução também nas religiões?