A vida é viver
De uns tempos pra cá passei a pensar bastante sobre afeto; não foram raras as vezes em que me senti carente de afeto ao longo desses ingratos dois anos de pandemia. Teve aquele momento bem específico em que a vida se acinzentou, talvez pela incerteza, talvez pelo medo, mas acho que muito mais pela tristeza desse tempo, que a depender do dia, pode ser cortada com uma faca. Por um raro momento, eu tive a certeza que a vida havia se convertido numa espiral de injustiças e dores. Razões para pensar dessa forma havia aos montes, bastava ligar em um noticiário qualquer, a vida estava ruim, estava sendo cruel e injusta.
Não sei dizer exatamente quando, mas um dia, enquanto eu trabalhava tendo certeza que era esse o pior tempo, uma bola caiu no meu quintal, me chamaram para fazer o resgate, e assim o fiz, e novamente a bola caia, e na pressa da vida, do relógio do capital, eu apenas joguei a bola de volta pelo muro. Mais um dia e outra bola, e outra chamada, e outra bola voando pelo muro, e assim de novo, de novo e de novo, o que era mecânico, se tornou cansativo, pegar uma bola era basicamente dar a volta em um terreno com três casas e uma quantidade maior de quintais do que de pessoas que aqui vivem. Era um ciclo que mais do que fisicamente cansativo, também era mentalmente, pois me desligava de um trabalho que pedia máxima concentração.
Decidi esperar por mais uma bola voadora para brigar com o dono dela, e assim foi, antes do que eu esperava a bola caiu, e lá fui eu, curva em um corredor, curva em outro, mais um e mais um, peguei a bola, que de tanto usada, já estava gasta, e voltei pelos mesmos corredores pensando no tamanho da bronca que daria naquele indivíduo, subi os degraus da entrada, abri o portão e lá estava, não uma, mas um grupo de crianças de mais ou menos 7 ou 8 anos, uma delas, me encarando envergonhado, pediu gentilmente a bola e sem pensar muito, eu a entreguei, não briguei, não reclamei, apenas entreguei e voltei pra dentro de casa.
Meu bairro foi se tornando, gradativamente ao longo dos anos, um local perigoso. As pessoas passaram a se confinar dentro de casa por segurança, e nesse movimento de entrada, as crianças desapareceram à vista, não era seguro permitir que estivessem brincando na rua, não era seguro que tivessem a mesma infância que um dia eu tive. Sem crianças, sem brincadeira, meu bairro se tornou triste, em alguns momentos quase desértico. Mas assim, da noite para o dia, sem qualquer tipo de aviso, as crianças voltaram, esse retorno realimentou uma esperança no futuro que nem mesmo eu sabia que havia perdido. A rua, até então pacata, voltou a ser um ambiente de jogos, de gritos, risadas - e de bolas voadoras que vez ou outra me irritam. As risadas muitas vezes irradiam para meu quarto por volta das 15h da tarde, por volta das 15h30 a bola começa a rolar, bastam poucos minutos até que haja a primeira briga, a primeira comemoração de gol e assim em diante.
Às vezes, passeando na rua com minha cachorra, paro em um canto qualquer somente para observar aquele grupo de crianças escandalosas e sorridentes, jogando bola sob o sol laranja das 17h da tarde. Esse ambiente recuperou as cores da vida para mim, costumo dizer para mim mesmo que estou criando memórias enquanto as observo. E que memórias lindas estou criando. Memórias que me trazem esperança em uma vida que seja melhor e mais feliz do que está sendo agora. Um futuro que será mais. Mais tudo de bom. Mais amor. Mais liberdade. Mais alegrias. Mais.
A vida, se impõe, sempre. E diferentemente do que um dia julguei certo, sob a perspectiva correta, ela pode ser boa. Boa como escrever uma crônica em um sábado de folga no silêncio de uma noite quente de uma quase primavera. Boa como receber o afeto de uma amiga querida, mesmo em tempos tão estranhos. Boa como receber a bênção de minha mãe toda manhã. Boa como trabalhar com o que me faz feliz. Boa como ter amigos tão especiais. Boa como descobrir, observando uma partida de futebol, que amor, afeto, carinho e esperança sempre estiveram aqui, estão aqui agora e sempre irão estar, era preciso somente adaptar o olhar do observador.
A vida seguirá sendo difícil, e ruim, e complexa, e desafiadora, e surpresa, e intensa, e arrebatadora, e triste, e alegre, e amada, e fácil, e sonho de consumo de filósofos, historiadores e antropólogos, mas me agarro, como Gonzaguinha, na pureza da resposta das crianças: é bonita, é bonita e é bonita!