Auditórios e abóboda da nossa grande esfera (*)
(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível
APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 30/05/3315
No final da tarde de hoje fui até a Praça Oeste apreciar o pôr do sol, mas quase não consegui encontrar um lugar para sentar-me. Na verdade, isso foi uma sorte, porque lá no final, num canto onde quase não se tem a visão do horizonte, havia um lugar vago ao lado de meu velho conhecido Carlinhos Salam. Foi ele quem teve a ideia, há cinquenta e cinco anos, de construir os auditórios na base da estrutura globular do nosso futuro centro comunitário, e de reservar a calota superior para uma abóbada de aço e vidro.
Na época, ainda não estava definitivamente aceita pela comunidade a ideia de construir um novo e monumental centro comunitário, que haveria de ser uma esfera gigantesca, de 150 metros de diâmetro flutuando 4 metros acima do solo, sustentada por quatro pilares.
Os críticos da ideia diziam que uma obra de tanta complexidade desviaria o foco principal de nossa comunidade do ajardinamento para a arquitetura. Os contra-críticos respondiam “Ajardinar o quê mais, se até os canteiros de tomates estão ajardinados?”
A discussão acabou quando Carlinhos divulgou um esboço do aproveitamento interno de um globo de 150 metros de diâmetro. O conceito era tão belo, simples e genial que encantou a todos, e assim uma comunidade de apenas 25 mil habitantes empreendeu um projeto digno de faraó.
No desenho de Carlinhos, considerados os 150 metros de altura da esfera, os primeiros 30 metros da estrutura seriam ocupados por vários auditórios, de variados tamanhos, sempre aproveitando a curvatura da calota inferior para a formação dos anfiteatros, com palcos giratórios e números variados de poltronas.
No topo, uma calota de 30 metros de altura seriam um espaço único e aberto, coberto por uma abóboda de aço e vidro transparente, formando um ambiente ideal para astronomia, cerimonias religiosas, danças e atividades artísticas, e para qualquer outra atividade de encantamento da alma. Os noventa metros intermediários seriam fatiados em seis andares de 15 metros de pé-direito, para todo tipo de uso comunitário. A abóboda, portanto, seria o sétimo andar. Sem contar os auditórios.
O pé direito dos andares é tão alto para que haja luz natural suficiente em cada piso. Aos 75 metros de altura, o quarto piso formará uma coroa com nada menos que 50 metros de largura.
O projeto de Carlinhos foi sendo gradualmente modificado, à medida que surgiram novas ideias, todas elas coerentes com o projeto original. A mutação mais substancial foi a substituição do cilindro/coluna central de 50 metros de diâmetro, por quatro colunas tubulares de 15 metros de diâmetro cada. Essas colunas seriam maciças no alicerce e ocas do nível do nível do solo para cima, para conterem escadarias e elevadores.
Fiquei confuso e questionei meu amigo. Parecia-me que quatro tubos de 15 metros não poderiam substituir um tubo de 50 metros. Então, ele tratou de ser o mais didático possível:
- Vamos lá. O edifício tem a forma de um globo. Agora imagine que ele tem um eixo vertical. Esse eixo é um cilindro de concreto de 50 metros de diâmetro e espessura de 1 a 2 metros, para sustentar toda estrutura. Até aí tudo bem? Agora retire o cilindro, deixando o espaço vazio, para entrar luz natural e para circulação do ar. É um "poço de luz", que os antigos chineses chamavam de "chaminé para o céu".
Mas, sem tal cilindro, o que sustentará os pisos e paredes? Resposta: quatro cilindros de concreto menores, de 15 metros de diâmetro cada, afastados uns dos outros o suficiente para não obstruir o poço de luz. Entendeu?
Vendo que eu ainda estava confuso, ele tirou uma caneta do bolso e um pedaço de papel, e desenhou um grande círculo, e dentro desse círculo desenhou quatro círculos menores, afastados uns dos outros, e os ligou entre si com uma linha curva. Então explicou:
- Esse é um corte horizontal bem no meio do globo. Aqui no meio é a entrada de luz e ar. Os círculos menores são colunas ocas, que sustentam o edifício e, dentro delas colocaremos elevadores e escadarias. O círculo externo tem 150 metros de diâmetro, certo? Os círculos-colunas têm 15 metros de diâmetro cada. A distância entre eles é de aproximados 20 metros, para manter livrea área central.
Perguntei: - Essas quatro colunas vão até o topo do edifício?
- Não - respondeu. - Vão até o sétimo piso, a 120 metros de altura. Daí para cima o espaço será todo aberto, tendo acima apenas a abóboda de vidro e metal. Haverá prolongamentos das colunas de concreto, para sustentação da abóboda, mas serão de metal treliçado, ou de bambu combinado com polímeros. Importante é que a luz atravesse a abóboda, e desça pelo poço/chaminé até o primeiro piso.
Já se passaram cinquenta anos desde o início da construção do grande globo. Trinta foram necessários para a construção do alicerce. Nos vinte anos seguintes a estrutura da esfera alcançou 52 metros de altura, parecendo uma estranha taça rasa com quatro gigantescos pés. Nesse ritmo a obra será finalizadas pelos nossos bisnetos e seus filhos.
Até agora são duas lajes prontas. A primeira foi colocada a 30 metros da curva inferior da esfera, para ser o teto dos auditórios e piso do primeiro andar. A segunda está 15 metros acima. Esse espaço está sendo utilizado pelo Serviço Obrigatório, e por um restaurante e um hotel, ali instalados para alimentar e abrigar os operários da obra, em sua maioria voluntários vindos de todo o continente sul-americano.
Nos espaços dos auditórios por enquanto apenas há enormes vazios. Provavelmente os auditórios serão os últimos a receber equipamentos e mobília.
O pôr do sol de hoje não foi tão espetacular. Uma nuvem um tanto carregada e maciça cobria a linha do horizonte. Mas foi imensamente prazeroso conversar com Carlinhos, que não via desde a formatura, há trinta e nove anos. Ele continua tão animado com o planejamento e construção do faraônico globo de concreto e vidro que, aos 67 anos, ainda mantém o entusiasmo de um adolescente.
Há pessoas que iluminam a vida da gente com sua simples presença, e Carlinhos é uma delas.