Bate-papo com Zé Carlos - Arquitetura interna para uma esfera de 150 metros (*)
(*) Nem tudo são flores no Planeta Jardim - Crônicas de um futuro possível
APIABÁ (20.8 S, 47.5 O), 01/09/3321
Lá se vão trinta e cinco anos. Eu tinha vinte e oito anos, era recém-formado do Serviço Obrigatório.
No final de um dia de trabalho, quando sentei-me em um banco da Praça Oeste para relaxar e apreciar as cores do poente, um jovem de aproximados vinte anos sentou-se ao meu lado e puxou conversa.
Ele estava preocupado com a monografia escolar que teria que elaborar com propostas para a arquitetura interna do futuro centro comunitário, a NGE - Nossa Grande Esfera.
Achei interessante envolver os estudantes, através dos exercícios escolares, no projeto da megaconstrução, em vez de reservar esse privilégio aos sabetudos da Engenharia. O rapaz explicou o teor das suas dúvidas e concordei que havia razões para ele sentir-se perdido.
Nossa linda cidade de Apiabá, fundada há mais de 1.200 anos, autoproclamada “Graça do Sapucaí”, apesar de não ter mais que vinte e cinco mil habitantes já ia adiantada na construção de um centro comunitário em forma de globo, com nada menos que 150 metros de diâmetro. A esfera de concreto e vidro, flutuando quatro metros acima do solo, apoiada em quatro colunas mestras, pretende igualar-se em altura à Grande Pirâmide do Egito. Foi imaginada para se tornar um símbolo da Era Atual. Quando estiver concluída será “maior que a própria cidade”, dizem os engraçadinhos de plantão.
A arquitetura interna de um prédio em forma de esfera, com pisos em forma de coroa circular, requer imaginação para o aproveitamento racional de um espaço que em si nada tem de racional. Desde a Era Atlântica os edifícios são quadrilaterais porque é mais prático alinhar pedras em linhas retas do que em curvas, e o mesmo conceito vale para a fabricação de móveis e equipamentos. As tentativas de mudar esse princípio sempre resultaram em perdas de espaço útil e custos adicionais. As construções cilíndricas são boas para a silagem de cereais, mas para residências ou locais de trabalho são tão ruins quanto as pentagonais, que deixam seus ocupantes desorientados. As triangulares são tentadas muito excepcionalmente, porque o aproveitamento do espaço interno é simplesmente horroroso. As próprias pirâmides e prismas, que têm base quadrada ou quadrangular, são más idéias, porque as paredes inclinadas inutilizam quase metade do espaço interno. Que dizer da loucura de construir em forma de esfera?
Além disso, o edifício terá limitações internas representadas pela enorme abertura da iluminação natural da parte interna.
Eu tinha uma resposta simples para dizer ao rapaz: basta aplicar o princípio da quadratura do círculo, e uma simples bússola pode indicar a melhor posição dos ângulos. No entanto, isso seria vago demais, em nada ajudaria o estudante.
Na verdade, eu não tinha muita clareza em minhas ideias, e resolvi improvisar. Perguntei ao jovem o seu nome e ele disse “Zé Carlos”.
— É um nome comum, mas não sei se alguém já pensou no quanto é intrigante.
— Como assim?
Fui raciocinando em voz alta, e o rapaz ia arregalando os olhos à medida que eu falava:
Zé, segundo a lenda, foi um carpinteiro, que aceitou corajosamente a gravidez da esposa em circunstâncias constrangedoras. Humildade elevada ao quadrado. Carlos, ao contrário, segundo a História foi um rei medieval que unificou grande número de feudos europeus e reinou sobre todos eles, formando uma nação que durou mais de dois milênios, a França. Aquele rei ficou conhecido como Carlos Magno, para dizer que foi o maior de todos. Ele viveu em glória e poder, autocracia e vaidade elevadas ao cubo pela ideia da origem divina das famílias reais daquela época. “Zé Carlos” é portanto a junção de dois extremos da alma humana.
Completei dizendo que ele, jovem em fase de consolidação da estrutura mental, tinha a missão cármica de aprender a usar a grandeza orgulhosa de Carlos na escolha de seus projetos e metas, e a humildade de Zé nas decisões e na carpintaria da vida. Em outras palavras, pensar com grandeza e agir com humildade. Conciliar esses extremos só é viável com as escolhas do coração, nunca as do intelecto.
Na elaboração de projetos grandiosos como a NGA, por ser um "Zé Carlos", ele poderia escolher uma entre duas linhas opostas de pensamento: 1. Com a humildade de Zé, poderia usar os conceitos convencionais da arquitetura quadrilateral tornando o projeto interior da Esfera mais prático. Os espaços que sobram, em forma de meia-lua, podem servir como áreas de descanso e contemplação. 2. Com a grandeza vaidosa de Carlos, o aproveitamento do espaço poderia seguir algum conceito radial, combinado com elementos octogonais, que são menos desorientadores para quem circula dentro do edifício.
Parei de falar, ficamos em silêncio durante uns cinco minutos.
Por fim, o jovem Zé Carlos riu sem graça e disse que eu havia piorado o que já era complicado. Disse que, como lhe haviam dito, eu tenho uma habilidade impressionante de "sair pela tangente".
À noite, chegando em casa, contei o caso para minha esposa e ela riu-se. Mais uma rindo de mim...
— O que você faria se fosse Zé Carlos?
Respondi que “felizmente não sou Zé Carlos”, e ela disse:
— É verdade, você tem uma habilidade impressionante para sair pela tangente, quando o assunto é complicado. Quem sabe, você poderia imaginar formas tangenciais para a arquitetura interna da Nossa Grande Esfera...
— Impossível, como vou usar tangentes dentro de uma esfera se tangente é uma linha externa por definição?...
Vera Lúcia caiu na gargalhada. Ela estava brincando comigo, e eu levando a sério aquela conversa. Eu sou assim mesmo, gosto de divagar e ao mesmo tempo me levo a sério, mas também sou capaz de rir de mim mesmo.
Sempre fui entusiasta do projeto de construção da NGA, e o desafio de Zé Carlos não saia de minha cabeça. O que eu decidiria se fosse ele?
No meio da madrugada, acordei pensando numa solução, simples, confortável, conciliadora. Acordei Vera Lúcia e falei: “Se eu fosse Zé Carlos proporia uma solução mista. Alguns andares com aproveitamento hexagonal, outros com aproveitamento quadrilateral, e outros com disposições radiais, heptagonais, hexagonais, octogonais...”
Vera Lúcia olhou-me com uma cara de sono, virou-se para o outro lado, acomodou a cabeça no travesseiro, e voltou a dormir sem dizer nada.
Pela manhã, acordei com uma idéia latejando na cabeça: cilindros verticais dentro da esfera... Acho que ... deixa pra lá.