Criando asas

Bom, tomei bomba pra não fazer o segundo grau em Belo Horizonte, aos quinze anos, como está na crônica “Criando Bunda”. Com essa decisão, ganhei quatro anos de gorjeta na casa paterna e adiei a vida de adulto. Não ia continuar “criando bunda”, tinha de começar a "criar asas". Aquela advertência da minha mãe antecipou o segundo tempo da minha vida.

 

     Contabilidade e datilografia

     A partir daí, tinha que me mexer. O intervalo seria de quatro anos. Passei a estudar Contabilidade à noite, na Escola de Comércio Profa. Maria Dolabela, única opção de segundo grau da cidade. Paralelamente, aprendia datilografia, porta de entrada no mercado de trabalho na época. Já sabendo datilografia, passei a frequentar o Fórum. Fazia pequenos trabalhos de rua para meu pai no Cartório do Crime (chamava-se assim mesmo) e , de vez em quando, usava meus conhecimentos recém-adquiridos adquiridos na datilografia. Uma asa estava crescendo.

 

     Minha meta era ser mais rápido do que meu pai na máquina de escrever. Afinal, eu usava usava os dez dedos, não olhava o teclado, copiava direto do texto colocado à esquerda, ou seja, seguia rigorosamente o método. Já meu pai se virava apenas com os dois indicadores, aprendeu na marra. Mesmo assim, o “Dininho”, como era conhecido, mesmerizava o público dos júris ao arrancar faíscas na Remington Rand na hora de depoimentos de réus e testemunhas. O juiz ditava e ele transcrevia quase simultaneamente. Sua performance era uma atração a mais na estação anual de júris da Comarca de Pitangui, quando os seres humanos desnudavam suas tragédias pessoais e viravam espetáculo público.

 

     O contato diário no Fórum me fez sonhar secretamente em ser advogado. Queria transitar com pastas de processos pelos corredores e ser chamado de “doutor”. Os modelos eram muitos: Tasso Lacerda Machado, João Baptista Bicalho, João da Silveira Bicalho e o Promotor de Justiça, Laércio Rodrigues. Seguindo esses modelos, queria que o meu pai ficasse orgulhoso de mim. E ele ficava.

 

     Com o passar dos meses, papai esqueceu sua mágoa por eu ter desprezado a vaga para engenharia no Colégio Estadual, em Belo Horizonte, e começou a me dizer que eu seria seu substituto. Isso iria ficar evidente em 1968, último ano do 2º grau, quando não interferiu, mas tampouco encorajou meus preparativos para o vestibular e a mudança para Belo Horizonte. Por ele, eu teria ficado no seu lugar, faria concurso e seria escrivão, que nem meu bisavô, Faustino Otto e meu avô Alexandre Pereira Neto. Mas eu já estava em outra "vibe". Meu tempo em Pitangui terminaria no final de 1968, com o diploma de contador.

 

     Os processos criminais, copiados a pedido dos advogados, me deram os primeiros "cobres". Além disso, me fizeram conhecer um monte de dramas humanos. Era o mundo real se abrindo para o rapazinho: roubos, agressões, mortes, suicídios, estupros, acidentes com mortes, erros judiciais e outros capítulos da tragédia humana.

 

     Em 1966, apareceu um trabalho mais constante de datilografia. Era para datilografar todo o acervo do Instituto Histórico de Pitangui (IHP), em processo de criação. O sr. Achryses Gonçalves, homem calmo, culto e educado, cuidava de transcrever processos dos séculos 18 e19. Meu trabalho era datilografar o que ele me passava. Desse material, chamavam a atenção processos de compra e/ou venda de escravos e o IHP os trouxe para conhecimento do mundo moderno.

 

     Nos intervalos dos cafezinhos, o sr. Achryses ensinava-me História de Pitangui, Minas, Brasil e do mundo. Esse contato me fez também conhecer de perto o Promotor de Justiça, Laércio Rodrigues, idealizador do IHP. Foi ele quem me aconselhou a fazer curso de Letras. A cerimônia de fundação do IHP aconteceu em 1969, eu já não morava na Velha Serrana. No dia da cerimônia de instalação, o embaixador Paulo Miranda e eu estávamos na terrinha. Caiu a sopa no mel: fomos convidados a participar e assinamos a ata de fundação.

 

      Literatura

      A outra asa foi a paixão pela Literatura, em especial Machado de Assis. Havia livros escolares ultrapassados nos armários do cartório e, folheando um deles, encontrei o "Bruxo", amor para toda a vida. Num trecho de "Dom Casmurro", ajudei Bentinho a pentear os cabelos de Capitu, e também naufraguei naqueles “olhos de cigana, oblíquos e dissimulados”. Senti também, como Rubião, o espírito pairando sobre o abismo e nunca mais deixei de pairar no céu da Literatura.

 

     Idiomas

     As outras asas seriam os idiomas. Naqueles armários do Cartório, encontrei livros de leitura com textos em espanhol. Li e gostei. Um dos textos em espanhol era uma versão de O Quinze, de Rachel de Queiroz. No Ginásio, tive Inglês, Francês e Latim, outro incentivo. Já a música me bombardeava todo dia pelo rádio em francês, inglês e, especialmente, em italiano. Já tinha asas, faltava só voar. O ano de1969 chegava a passos largos. 

 

William Santiago
Enviado por William Santiago em 31/08/2021
Reeditado em 28/11/2023
Código do texto: T7332503
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