Minha ex-amante

As regras morais não valem para todos ao mesmo tempo, geralmente valem para os outros e a nosso favor ou a favor de quem quer que seja e contra nosso governo. Regras são grades de proteção, são escudos para guerrilha, merda no ventilador. Há o costume da pessoa querer se apresentar como boazinha, perfeita, geralmente quando ela não o é, e acredita numa evolução da natureza, ou ainda, está de saco cheio das próprias oscilações sem controle. Há uma série de costumes, uma série de mitos, uma série de tergiversações, uma série de teorias, uma série de caminhos que não chegam a lugar satisfatório, não chegam a lugar nenhum senão numa estação da verdade, uma estação provisória.

Minha amante compreendia tudo isso, compreendia tão bem que não apostou em mim como uma nova estação, quis permanecer no lugar onde examinou a possibilidade de protelar a seu favor o estado provisório. O casamento dela era uma ruína, mas não uma ruína completa, havia ali algo que lhe favorecia viver. No calor da decepção que tive com meu encanto afetivo cheguei a acusá-la de hipócrita, estava claro que ela deveria escolher ficar comigo. Não estava claro, porém, que seríamos felizes para sempre.

Dizer assim dá a impressão que a felicidade é impossível entre dois indivíduos que decidem viver juntos, que para tudo há um tempo e um esgotamento que exige renovação. Há vários séculos o dinheiro fala mais alto que a afetividade, em nosso século além da grana, o status é primordial. As pessoas que desejam a felicidade e negam as chances de frustração são aquelas cujo valor se abre ao gozo sem necessariamente se fechar para a instância sócio-econômica da vida. E fazem isso balizados pelo amor e pela amizade ou pelo menos por um desses sentimentos.

Tínhamos muito desejo um pelo outro, minha condição financeira não era copiosa mas não era também minguada, e ela me via como um escritor, um poeta. Havia elementos suficientes para que tentássemos viver juntos e felizes. Por que então ela não caiu de vez em meus braços? Acredito ter sido pela falta de certeza da parte dela sobre o vínculo de amizade e amor. Acreditando nisso não apenas enalteço a decisão acertada dela, como me convenço mesmo que provisoriamente, que ela não fora medíocre, nem mesquinha, nem hipócrita, mas uma mulher que agiu cuidando de si. E digo isso de forma objetiva e não subjetiva, porque no fundo eu sei o quanto de amor e amizade eu lhe tinha a oferecer.

Existe momento na vida que uma decisão acertada, mesmo que mais prosaica, técnica, racional, do que afetiva, é o melhor a se fazer para continuar vivendo. Caberia ao ser humano uma postura ético-crítica, embora de dentro da situação isto seja tarefa quase impossível, para compreender a necessidade da própria decisão, e tentar não se sentir culpada por deixar outra pessoa triste ou magoada. Da outra parte, a vida é tão intensa, tão repleta de possibilidade, de possibilidade de amor e amizade, de encontro com pessoas fascinantes, que vale a pena respeitar a decisão alheia, vale a pena tentar compreender, se colocar do ponto de vista da outra pessoa, dedicar todo seu amor e amizade na busca dessa compreensão, e não para cultivar um egoísmo idiota, um individualismo macabro.

Eu dou nota 10! a minha ex-amante.

troclone
Enviado por troclone em 11/11/2007
Reeditado em 11/11/2007
Código do texto: T733097