Notas sobre meus vizinhos

Sou vizinho de um papagaio que canta, mas não canta qualquer canto, canta apenas um canto, que vai das 4h às 8h e especificamente aos domingos. Durante toda a semana esse papagaio silencia, porém basta a noite do domingo apontar 4h que ele dá início à sonata rubro-negra. Hoje o hino não tocou. Isso não ocorria, pelos menos, nos últimos cinco anos. Eu o conheço bem, apesar de não lhe ser da família. Sei de sua pontualidade. Sei, também, que o Flamengo, ontem, goleou. E esse papagaio cantante não é de faltar. Receio o pior.

Sou também vizinho da dona desse papagaio, sua aparente única companhia. É uma senhora de saúde abalada, pálida, voz rouca, que tem acessos de tosse e, poucas vezes no ano, de risos também. Em dias de sol quente, geralmente aos domingos, ela traz o papagaio e a cadeira de balanço à calçada, deitam-se na cadeira e ficam a esquentar-se. Conheço essa senhora, apesar de não lhe ser da família. Sei de sua saúde frágil, de sua palidez, de sua voz rouca. Sei também que hoje é domingo e faz sol quente e adiciono à ausência do papagaio à ausência da dona e receio o pior.

Essa silenciosa senhora e seu cantante papagaio são meus vizinhos, dos quais muito me orgulho. Mas nem todos meus vizinhos me orgulham, e possivelmente vice-versa. Tenho, por exemplo, uma vizinha loira, a meu juízo, feia e chata; linda e simpática, de acordo com o senso geral. Essa nossa vizinha cursa direito, tem menos de trinta anos, não sei quantos dentes, mas os fronteiriços visivelmente conservados. Há um dia nós não nos vemos. Receio o pior.

Sou inclusive vizinho de uma esquina que se chama Beco do Roncador, uma das mais apertadas e movimentadas do hemisfério sul. Ela infelizmente não fala, mas grita que é uma beleza. Se falasse, penso, seria insuportável. É o caminho mais perto para o coração da cidade. Por aqui passa de tudo um pouco: de viatura da polícia à dos Bombeiros, de comunistas a fascistas e, segundo um de meus vizinhos mais antigos, depois da meia noite, é rota de lobisomem. Eu, particularmente, lobisomem ainda não vi, mas não chego a descrer. Creio tanto em lobisomem quanto nos homens. Nesse caso, infelizmente, não receio o pior.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 29/08/2021
Reeditado em 29/08/2021
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