Casal de passageiros
É sábado, são cinco da manhã, faz trinta e cinco graus de silêncio em União City e a polícia ainda não passou em sua ronda matutina. Passa um casal de passageiros, cada qual ocupando uma faixa da rua, conversando aos berros. Ele, cambaleante, lento, gracejador, suavemente ornado com um chapéu de vaqueiro à cabeça; ela, quase séria e mais ou menos brava, ereta e rígida no passear. Ele lhe remete um gracejo, ela desaprova. Ele tenta se aproximar dela: avança para o outro lado da rua onde está a moça oitenta por cento séria, leva-lhe o braço ao ombro e lhe fala ao ouvido. Em seguida, ambos param, dão-se as mãos, abraçam-se e, finalmente, beijam-se.
São cinco da manhã de um sábado qualquer, mas essa cena me faz crer que talvez seja Dia dos Namorados. Vejo esse par de passageiros, agora de mãos dadas, agora em silêncio mútuo, sob as bênçãos desta manhã de sábado e da ausência da polícia. Por um momento, breve momento, tenho a impressão de que a vida não é (apesar das maçadas, das segundas-feiras, do Natal) não é de todo e aparentemente um caso perdido. Há dias em que ela se mostra suportável e até vivível.
Há nesta manhã de sábado, na pessoa desse casal de passageiros, aquilo que os técnicos chamam de mistério. Ele e ela são, a esta altura da manhã, a chama que acende minha escassa esperança de que viver, às vezes, não custa caro, não requer diploma, tampouco ações na Nasdaq. Desconheço a condição pecuniária de ambos, sua formação acadêmica, se têm papéis timbrados na bolsa de valores. Ainda que possuam esses atributos, porém, a esta altura da manhã, qual relevância teriam, em face da cumplicidade que denotam um ao outro?
Viver pode não ser muito caro, é verdade, mas sem dúvida é muito perigoso, como consta em livro e apontam as estatísticas. As estatísticas estão aí para comprovar. Balas perdidas, acidentes domésticos e automobilísticos, assaltos a mão armada ou à traiçoeira são alguns dos exemplos de perigo de morte a que estamos, os vivos, sujeitos. Não é à toa que os planos de saúde estão com as vendas de vento em poupa, logo atrás das igrejas, naturalmente...
Sorte têm cardiologistas, que, segundo li recentemente, vivem em média mais de noventa anos. Não sei se por conta dos cuidados com o coração ou devido a sua condição monetária internacional. De qualquer modo, ao ver este casal de passageiros, lamento não ser cardiologista. Não pelos noventa anos ou mais que me seriam possivelmente possíveis, mas para auscultar o coração desse casal de passageiros e decifrar o conteúdo da mensagem que acende minha escassa esperança de que a vida pode, às vezes, ser abraços, beijos e apertos de mão. Que pode ser, apesar dos pesares, vivível.